A psicóloga Silvia Silva usa a figura do iceberg para falar sobre racismo, pois a imagem tem um apelo didático. As pessoas tendem a acreditar que o racismo acontece apenas no nível interpessoal como piadas racistas. Esse conceito é insuficiente pois não dá a dimensão de como o racismo permeia a nossa sociedade como na educação, política, cultura, trabalho, sendo estrutural e estruturante em nossa sociedade.
Icebergs nada mais são do que gigantescos pedaços de gelo que flutuam sem direção definida em águas geladas. É um fenômeno da natureza mundialmente conhecido por ter sido a causa do acidente com o transatlântico Titanic. Isto porque a maior parte dela fica submersa, somente 10% dele emerge à superfície.
Daí surgiu a expressão popular: “isto é apenas a ponta do iceberg”, que significa que certa coisa é apenas o começo ou uma pequena parte de um problema ou situação muito maior e complexa. Por isso, a especialista em segurança pública em psicologia clínica humanista e mestre em psicologia social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Silvia Silva, tem usado a figura do iceberg para falar sobre racismo, pois a imagem ajuda muito e tem um apelo didático.
Silvia é autora do curso “Como ser antirracista na prática” e também facilitadora de grupos dos estudos sobre racismo estrutural e branquitude. Ela atua em empresas dando consultoria e facilitando processos de formação sobre as relações raciais. No Brasil, o tema é tratado superficialmente, de uma maneira mais generalizada e o que chega ao público são informações distorcidas e parciais do quê é o fenômeno do racismo.
“As pessoas tendem a acreditar que o racismo acontece apenas no nível interpessoal: quando se xinga alguém ou trata uma pessoa de forma diferente baseado na questão de raça. A grande maioria das pessoas entende o racismo assim. Quis trazer essa figura e ali trabalhar outras dimensões do racismo que não estão explícitas.”
A intenção é chamar a atenção para os dois níveis de racismo que organiza e fundamenta nossa sociedade: o estrutural e institucional que são interligados e interdependentes. Geralmente, ficamos apenas na ponta visível nos atendo apenas às questões mais superficiais e acaba não trazendo a complexidade do sistema.
“Isso é um problemão porque estamos numa sociedade racialmente organizada. Desta forma, o racismo atinge a todo mundo. Apesar de muitas pessoas se autodenominarem não racistas, pois tem amigos negros e são gentis com eles, de alguma forma estão inseridos nesta perspectiva institucional e estrutural. Este é o grande debate. O iceberg auxilia a fazer uma compreensão mais adequada da complexidade deste fenômeno”, comenta a autora.
No mundo corporativo, por exemplo, o conceito de iceberg organizacional é bastante utilizado para explicar a constituição de uma companhia. Fazendo uma analogia, a menor parte do bloco de gelo, que fica visível sob a linha da água, representa os resultados de uma empresa e que são apresentados para o público e mídia. A maior parte, os 90% restantes, simboliza a estrutura e organização da companhia, responsável pelos resultados da “superfície do iceberg”. Esta parte representa todos os setores “invisíveis” de uma empresa.
Da mesma forma, na questão do racismo, estamos falando de um sistema extremamente complexo que tem tentáculos em todas as áreas onde serão necessárias ações em várias frentes. Em termos de macroestrutura, entram o Estado, a economia, a política, as ideologias e as mídias sociais. No cotidiano, nas práticas mais minimalistas, estão os programas de TV, os produtos que consumimos, as relações de trabalho. É um fenômeno que impacta as realidades individuais e coletivas.
“Felizmente, muitas pessoas brancas têm entendido que elas fazem parte desse sistema e que precisam se comprometer com esta pauta. Da mesma forma que machismo não é uma pauta apenas de mulheres. LGBTfobia não é uma pauta da comunidade LGBTQIAP+. Todos devem se envolver”, completa Silvia.
Para ela, um dos primeiros passos é das pessoas brancas se reconhecerem como racializadas, de entenderem que historicamente foram constituídas a partir de uma referência hegemônica. Durante o processo da colonização, marcadamente a partir do século 19, se reforçou a criação dessa hierarquia entre os grupos humanos e os brancos se colocaram no topo desta pirâmide e, desde então, eles vêm ocupando esse lugar de centralidade da experiência humana, de referência do universal da civilização, da estética da inteligência, da cultura.
Para a psicóloga, os brancos devem ainda sair deste lugar que sempre foram socializados e aprenderem a ver o mundo a partir do centro para pelo menos tentar se colocar no nível de horizontalidade. Uma das sugestões é a leitura “Não Basta Não Ser Racista: Sejamos Antirracistas”, de Robin DiAngelo. Ser abertamente racista não é algo socialmente aceitável. Ninguém quer ser visto assim. Mas cada vez que se nega o racismo, impedimos que ele seja abordado e que nossos preconceitos sejam discutidos. As reações de negação não servem apenas para silenciar quem sofre o preconceito, também escondem um sentimento que a autora Robin Diangelo passou a chamar de fragilidade branca. Em seus estudos, Diangelo catalogou frases, palavras e sentimentos de voluntários que se vêem sem qualquer preconceito e demonstrou que, no fundo, ele estava lá. Sua proposta é que todos comecem a ouvir melhor, estabeleçam conversas mais honestas e reajam a críticas com educação e tentando se colocar no lugar do outro.
“Anteriormente, quando se falava de racismo, as pesquisas se detinham apenas na questão da população negra na saúde, na educação, na subjetividade, na renda, na ascensão dos cargos de gestão de liderança, questões importantíssimas, diga-se de passagem. Mas faltava uma reflexão importante. Porque, se tinha um grupo em extrema desvantagem, tinha outro com altíssima vantagem”, reforça Silvia.
A pesquisa PoderData mostra que 81% dos brasileiros dizem haver preconceito contra negros no Brasil por causa da cor da pele. Para 13% da população, o racismo não existe no país. “O problema é colocar isto em um contexto, pois a lógica do individualismo é muito forte. No processo de socialização da branquitude, as pessoas no geral vão se pensar individuais com referências muito particulares sem dar conta dos processos que as constituem enquanto grupo. Então tudo isso vai se formando, vai-se juntando, como num quebra-cabeças muito perverso mesmo e vai dando esse resultado E aí na hora que a pessoa ouvir o Brasil é um país racista, ela se ofende pessoalmente: não, eu não sou. Esses vários problemas é que precisam ser descortinados para ela entender que sim ela é”.
Silvia, porém, defende que é muito importante para os ativistas manter por perto os aliados, “pois eles têm acesso a lugares que nós não acessamos ou acessamos, mas não temos a escuta de qualidade que eles têm. Porque tradicionalmente, as pessoas brancas escutam outras pessoas brancas. Eu defendo que lugar de fala é de todo mundo. Mais uma vez afirmo que o racismo é uma questão da nossa sociedade. Valorizo muito todas as pessoas que, de verdade, com compromisso, engajamento, respeito, seriedade, também se posicionam dentro deste debate fazendo os movimentos que precisam ser feitos para balançar essa estrutura”.
Uma das armadilhas que se deve evitar de cair é colocar pessoas negras exclusivamente para falar de racismo. “Eu, por acaso, sou uma pessoa que escolhi essa caminhada de me dedicar academicamente para isso. Devemos pensar que há muita gente preta e muito boa nas suas áreas que não necessariamente estão falando de racismo. A gente pode falar e fazer o que quiser, mas com consciência racial para também não cair no engodo de seguir discursos alienados, achando que o quesito raça não impacta em qualquer das trajetórias.
Quer saber mais? Escute o episódio 35 do podcast “Somos Newa”: O racismo atravessa a vida
Silvia Silvia – Estudiosa das relações humanas e das dinâmicas subjetivas surgidas em espaços coletivos (equipes, grupos, comunidades e etc) e da Comunicação Não-Violenta(CNV). Especialista em Segurança Pública e em Psicologia Clínica Humanista (Abordagem Centrada na Pessoa – ACP) e Mestre em Psicologia Social/UFMG.
Atua em diversos cenários na perspectiva do “Letramento racial crítico” e fortalecimento de ações antirracistas. Autora do curso “Como ser antirracista na prática?” e também facilitadora de grupos dos estudos sobre “Racismo estrutural” e “Branquitude”.
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