Depois da diversidade vem a inclusão.

Para Gustavo Glasser, fundador e CEO da Carambola, o primeiro passo é mudar a régua de entrada dos grupos sub-representados nas empresas e só depois pensar em como incluí-los nos processos decisórios, e explica porque depois da diversidade vem a inclusão.

 

As empresas de impacto social têm como objetivo causar um impacto positivo em uma comunidade, ampliar as perspectivas de pessoas marginalizadas pela sociedade, além de gerar renda compartilhada e autonomia financeira para os indivíduos de maior vulnerabilidade social.

Um dos principais diferenciais desse tipo de organização é que elas são desenvolvidas considerando a viabilidade econômica da intervenção com base em estratégias e modelos de negócios focados em resolver problemas sócio-ambientais.

Um dos exemplos deste tipo de empresa é a Carambola. Criado por Gustavo Glasser, nasceu em 2011 como uma fábrica de software. Seis anos depois, a empresa pivotou, ou seja, mudou radicalmente seu rumo se voltando para a formação com uma metodologia educacional única. Os participantes recebem para estudar e os times formados tem pelo menos um dos membros que faz parte de algum grupo sub-representado.

Trabalham com empresas do porte do Itaú, Grupo Fleury e Microsoft e a taxa de sucesso é enorme: 75% conseguem uma vaga de emprego. Isto porque existem quase 500 mil vagas de emprego em aberto na área de TI no Brasil e apenas 20 mil se formam por ano.

 

Conversamos com o fundador e CEO, Gustavo Glasser, vencedor do Prêmio Empreendedor do Futuro 2019, promovido pelo jornal Folha de São Paulo em parceria com a Fundação Schwab.

Blog: Qual o papel da ESG para impulsionar o tema da diversidade e inclusão nas empresas?

Gustavo Glasser: Na minha opinião, estamos vivendo um momento de inflexão. Eu brinco que as próximas gerações vão ver duas coisas: ou o fim desse capitalismo da forma que ele funciona ou o fim da humanidade. A adoção da ESG passa muito por este contexto. Ainda vivemos em uma era em que o dinheiro é o único jeito de medir o sucesso de um negócio. Quando falamos de  impacto social, todas as empresas geram um impacto socioambiental positivo ou negativo. Acho que ainda vai demorar para estes temas entrarem de vez na engrenagem, mas não há outra alternativa a não ser mudar. Não conseguiremos sustentar o mundo do jeito que está hoje. Temos de repensar os modelos de governança e estou falando da capacitação interna das pessoas. Pois quando se fala das letras E(Environmental) e do S (Social), se põe a responsabilidade nas pessoas que já estão vulneráveis.

Blog: Em qual “estágio” de diversidade você acha que estamos?

Gustavo Glasser: Não existe uma “opinião” sobre diversidade hoje. Existem fatos. Se você pegar por exemplo o número de mulheres em conselhos de administração, percebe que ainda é muito baixo. Eu acho que estamos sim vivendo uma pressão social para a inclusão de grupos sub representados. A sociedade também já começa a questionar o modelo que a gente vive. Tem empresas indo numa direção positiva, mas ainda tímida. Se fala muito em capacitação. O nome “programa de capacitação” é muito ruim, pois assume que aquela pessoa é incapaz de trabalhar nesse mercado.

Numa lógica simples, se há grupos sub-representados dentro das empresas, a culpa é de quem está dentro e não de quem está fora. Se inverte muito a lógica, colocando a responsabilidade de quem já é vulnerável. E, na verdade, o mercado de trabalho exclui essas pessoas, a falta de diversidade é uma consequência disso. 

Blog: Qual o principal gargalo da adoção da DE&I nas empresas?

Gustavo Glasser: Um dos principais pontos são os vieses presentes no processo de seleção e contratação. Isto é bastante sério, pois acreditamos que temos critérios rígidos e imparciais e, na verdade, são bastante subjetivos. Por exemplo: o gestor é uma pessoa branca com MBA que gosta de música clássica. Na hora de perguntar sobre a história do entrevistado, ele é negro, tem o ensino médio e ama funk. Não bate. E a culpa não é dele se não estudou e não é uma pessoa bem sucedida. Criamos bolhas onde só tem pessoas parecidas e então fica difícil entender essa realidade e a vaga passa para outra pessoa. Atualmente se fala muito em escala. Agora, na hora de contratar um negro, querem que ele tenha estudado em Harvard. Vão atrás da exceção.  Não querem escalar. Hoje, tem  27% da população de mulheres negras em situação de vulnerabilidade econômica e não há portas abertas para elas, principalmente por causa da escolaridade. Ninguém procura entender como isso aconteceu. Temos de ver um filme, não uma foto. O pior é quando é conveniente a olhamos o filme, quando não é, ficamos com a foto. Isso precisa parar de acontecer.

Blog: Qual a diferença entre diversidade e inclusão?

Gustavo Glasser. Para mim a diversidade, atualmente, é um check-list. Tem mulher? Check. Tem LGBTQIAP+? Check. Tem negros? Check. Tem pessoas com deficiência? Check. A inclusão é um passo depois. Quando temos uma boa base de diversidade, é hora de dar poder para estas pessoas, abrir espaço para que sejam ouvidas e se tornarem parte da tomada de decisão das estratégias do negócio. 

Só colocando todos para trabalharem juntos, trocando estas realidades diferentes, o trabalho será efetivo. Quando se fala de inclusão, a primeira barreira é a financeira, ainda mais na discrepância social absurda que temos no Brasil. Temos que questionar e ter contato com a  realidade que não é nossa o tempo todo. Porque até temos contato com estas pessoas no mercado de trabalho, limpando o banheiro, no caixa do supermercado. Mas não as encontramos em um consultório médico, em um cargo de chefia. E isto está intimamente ligado com a inclusão financeira dessas pessoas. Estava conversando com uma médica e todos da família dela fizeram medicina. Não estou tirando o mérito dela. Mas uma pessoa negra, favelada, não tem este histórico. Se ela consegue se formar, vai demorar cinco, seis gerações para ter outros médicos na família. Ainda estamos discutindo uma camada superficial da questão da diversidade.

Blog: Como nasceu a ideia da Carambola?

Gustavo Glasser: A Carambola nasceu com a ideia de fazer uma coisa diferente. Como não tinha estrutura, fui pegando um projetinho aqui, outro ali. Não entrava muito dinheiro e aí não tinha como pagar profissionais com altos salários. Então, eu contratava pessoas que tinha de ensinar. Passava um tempo e elas arrumavam empregos. Comecei a perceber que o que estava fazendo, dava certo. Aí, viramos uma empresa de educação. Mas para chegar neste ponto, trouxe a minha história pessoal. Quando fui fazer um curso gratuito, estava em situação de vulnerabilidade social onde ganhava 30,00 reais por dia. Mas tive que parar de trabalhar, porque ele era integral. Deixei de pagar a luz para poder estudar. Então, eu sei que não adianta só dar o curso. Tem que dar alguma oportunidade de renda também. A primeira coisa que conseguimos mudar foi criar um modelo na qual pudéssemos pagar para estudarem. Aí, eu tirei a primeira camada. Oferecemos uma segurança para que a pessoa se dedique a estudar.

Blog: Resolvendo a questão da pessoa empregada, como trabalham as lideranças, quem vai contratar?

Gustavo Glasser: Tem o outro lado, de educar o educado. Tenho um exemplo que é uma pérola. Recebi uma demanda de um fundo de investimento para fazer uma pesquisa sobre empregabilidade com as classes D e E on-line. Mas se a pessoa não tem nem luz, como tem acesso ao computador para responder as perguntas? A maneira que vemos o mundo interfere no nosso aprendizado. Então você está me perguntando: como é o processo de educação dos educados?  Primeiro, passa por entender qual a visão de mundo eles têm e qual é a visão do mundo dos contratados. Elas são diferentes. Isso tem pontos positivos e negativos dos dois lados e vai gerar conflito. O que importa é como transpor estes conflitos. A liderança tem que se abrir para entender, ver e considerar a visão do mundo de quem ele está contratando.  Temos de aprender a gerir a diversidade, que nada mais é do que gerir contextos de vida diferentes. Muitas vezes, ficamos procurando o que as pessoas têm em comum. Para mim, o  poder da diversidade é exatamente o que não temos em comum. 

Blog: Por que a Carambola escolheu atuar no setor de tecnologia?

Gustavo Glasser: Na Carambola, a gente empodera e faz sonhar. Atuamos na área de tecnologia, pois ela permeia todas as outras ainda mais neste momento em que vivemos esta transformação digital e está todo mundo aprendendo uma coisa nova todo dia: inteligência artificial, bitcoin, reuniões virtuais, funcionalidades das redes sociais. O mercado de tecnologia está saturado. Todos os homens, brancos, héteros são empregados e então tem uma oportunidade para abrir para a diversidade.  Por isso, temos de mudar a régua de entrada. Não baixar, mas mudar. Já estamos mudando critérios em vários assuntos e porque não neste? Então, a primeira medida que mostro para as empresas é a capacidade dessas pessoas aprenderem. Em quatro meses de curso, não é que a pessoa sai programando, mas tem todas as ferramentas para isto. Já tem a chamada “experiência” para colocar no currículo. E depois criar medidas objetivas de avaliação. Temos uma metodologia própria que consegue fazer isto. E com números, fica mais fácil justificar o investimento.

Blog: Como podemos superar os vieses inconscientes?

Gustavo Glasser: Todos nós temos vieses e não tem como tirar eles de dentro de nós. O que podemos fazer é colocar luz neles. Eu, por exemplo, tenho um vies homofóbico. Fui abandonado pelos meus pais e, inconscientemente, a minha cabeça fala que ser uma pessoa trans é errado. E como se eu tivesse colocado o dedo em uma tomada e tomado um choque. Não vou repetir. Mas eu tenho de criar outras vivências para ter direções positivas para superar esta visão.  Quando eu falo de trabalhar essas diversidades dentro das empresas é tentar trazer essas sombras. Ver quais pontos são predominantes e trazer à tona para podermos trabalhar e mudá-los. Não adianta chegar impondo, criticando. Mas sim mostrando como estas fraquezas podem se tornar fortalezas.

Gostou do tema?  Ouça o episódio do podcast Somos Newa,  na qual Carine Roos conversa com Gustavo Glasser, onde ele contou mais sobre o seu negócio social e nos deu um relato inspirador também sobre sua história de vida e a sua reconciliação com a sua mãe.