A psicóloga Robertha Blatt sempre usou elementos lúdicos nas sessões de terapia. Vendo os resultados positivos, quis extrapolar essa experiência para os museus. Daí nasceu uma exposição no Museu Nacional de Belas Artes que acaba de se tornar livro: Arte em Movimento.
Trazer arte para a vida das pessoas por meio de atividades como dançar, cantar e ir a museus e shows oferece uma dimensão adicional para melhorar a saúde física e mental das pessoas. Esta é uma das conclusões de uma pesquisa realizada pelo Escritório Regional para a Europa da Organização Mundial da Saúde.
O estudo de 2019, um dos mais abrangentes sobre o assunto até o momento, analisou evidências de mais de 900 publicações globais que mostram maneiras pelas quais as artes podem ajudar a enfrentar os graves problemas de saúde como diabetes, obesidade e de saúde mental.
O relatório destaca, ainda, que algumas intervenções artísticas não apenas produzem bons resultados, mas também podem ser mais econômicas que os tratamentos biomédicos comuns. Como elas podem ser adaptadas para pessoas de diferentes origens culturais e idades, intervenções artísticas também seriam uma alternativa para envolver grupos minorizados.
Em 20 anos de atuação como terapeuta infantil e de família, Robertha Blatt pesquisa a articulação de práticas terapêuticas e expressões artísticas, trafegando pelos papéis de educadora infantil, terapeuta de família, psicóloga, mãe e artista juntando psicologia, arte e educação.
No seu consultório sempre estiveram presentes recursos para a produção de desenhos e colagens como lápis, papel, argila e materiais de reciclagem – onde ela e o paciente trabalhavam em conjunto para entender os problemas apresentados.
Começou a sua vida profissional aos 18 anos em sala de aula como professora de educação infantil. Depois de 12 anos na função se tornou psicóloga escolar. Em paralelo, atendia individualmente em seu consultório particular. Naturalmente, as crianças se tornaram a maioria no rol de seus pacientes.
Diante da intimidade adquirida em sala de aula, tinha mais facilidade em lidar com as crianças. Em trabalhos voluntários, se apresentava para atender o público infantil, pois nem sempre existe uma disponibilidade específica e nem todos os terapeutas gostam de trabalhar com crianças.
O passo seguinte foi perceber que só atendendo as crianças, o processo era barrado na família em que ela vivia. “Se fosse uma criança muito pequena, ela não tinha condição de promover uma transformação. Nem eu, uma vez por semana, tinha esta condição. Até contribuía, mas não era sustentável, porque tinha uma dinâmica familiar que era maior do que eu poderia dar em uma hora de atendimento semanal. Fui buscar a terapia de família para complementar esse atendimento”, relata. “Comecei com o atendimento individual desejando atingir a família e passo a atender as famílias que, por sua vez, também, estão em um contexto social e cultural e aí vou expandindo gradativamente o alcance do meu trabalho”.
Todos eram convidados a se expressar “artisticamente”. O resultado do que ela chama de caos criativo, inicialmente, era exposto nas paredes do seu consultório, mas transcendeu e alcançou os museus.
Trouxe este aprendizado para montar uma exposição no Museu Nacional de Belas Artes – que chegou ao público na forma do livro “Arte aproxima” em maio de 2022.
Exposição e livro – A mostra que deu origem ao livro aconteceu em 2018. Nela, as crianças interagiam com o espaço do museu e seu acervo por intermédio de obras participativas criadas por Aline Gonet, Efrain Almeida, Emilia Estrada, Ernesto Neto, Prili e, inclusive, de Robertha Blatt.
O projeto inovador permitiu uma experiência singular aos visitantes, enunciando a reflexão e a descoberta de novos modos de apreciação da obra de arte.
“Ele nasceu desse desejo meio utópico de quebrar barreiras, me comunicar ou estar vinculada com essas questões sociais para promover algum tipo de contribuição reflexiva mínima que fosse para além da família”, comenta a profissional. “Desdobrar a minha experiência no consultório era uma forma de circular a comunicação de uma forma diferente. Peguei as premissas e desloquei para o museu. Não seria fazer terapia, mas seria criar espaços terapêuticos onde tenho a intenção que algo se mova a partir deste campo e que se manifesta através das nossas intenções fortes e do nosso compromisso. Foi em cima disso que fomos construindo o caminho da exposição. Eram obras participativas, mas que tinha uma equipe presente para oferecer esta interação e vínculo.”
Durante três meses, Robertha se “mudou” para o Belas Artes. Suspendeu alguns atendimentos, permanecendo só com os mais graves. Alguns pacientes foram visitar o museu junto com o público, tornando, também, uma ampliação das quatro paredes do consultório. Ela conta que no movimento de se deslocar, pegar o metrô, ônibus e ir até o centro da cidade, o paciente interagia com uma outra dimensão e ajudava a relativizar e até ressignificar. “Vamos vendo sementes ao longo do seu caminho. Tinha alguns pacientes adolescentes que estavam muito mergulhados na tecnologia e muitas vezes, fazia a proposta de fazer sessões sentadas na pedra do Arpoador. Pedia autorização dos pais que deixavam na porta do consultório e caminhávamos até lá. Fazer a sessão ali permitia novas dimensões de poder, explorar e experimentar o que se sente mudando o ambiente, cercado de uma natureza exuberante e generosa. Os adolescentes falavam que era diferente. Era possível relativizar o sofrimento fazendo um contraste com a dimensão maior do mundo, das possibilidades”, relata. “Por outro lado, muitos museus estão sem vitalidade e com pouca visitação. É um dispositivo que está pronto e só precisa ser acionado de forma diferente da que já existe. Vamos respeitar, mas também trazer novos formatos. O museu pode ser um lugar que vai trazer inspiração, estímulo e também um espaço de acolhida, reflexão e contribuição”.
Aprendizado – Uma das ativações de obras descritas no livro e vivenciada na mostra comparava telas de mesmo tema como a “Primeira missa no Brasil” pintada por Victor Meirelles em 1860 e Cândido Portinari em 1948, ambas do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Em “Cacofonia e fake news”, de Emília Estrada, os jovens descreviam as telas falando por entre os tubos de papelão que compunham o trabalho, como uma brincadeira de telefone sem fio, mostrando as diferenças de narrativas e explicando a origem das fake news.
A artista convidava as pessoas a se sentarem em frente às obras e observá-las por meio do tubo distribuído fazendo com que cada uma tivesse um ponto de vista diferente. Afinal, em quadro grande, se têm micro acontecimentos que compõem o todo e depois confrontavam com a carta que foi escrita tantos anos depois do acontecimento. A etapa seguinte consistia em passar a frase que descrevia a cena e passá-la adiante.
“Aí vem as deturpações. Porque a frase nunca chegava do mesmo jeito podendo associar a fake news que é a dificuldade de se comunicar. Muitas dificuldades estão ligadas pela forma como a gente se comunica. Muitas vezes, não se esclarece as coisas, não se confirma, não checa, subentendendo que o outro está entendendo aquilo que sentimos. Mas eu não comuniquei o que desejava comunicar”, explica a terapeuta. “ O tema da comunicação é um preditor de saúde. Ser vítima de difamação ou de fake news é adoecedor. Você estar dentro de um isolamento, de um ambiente onde não se sinta à vontade e tenha confiança para se comunicar é adoecedor. Receber uma comunicação violenta que te julga, oprime e não abre espaços é a maior violência. Ela está presente dentro das famílias: violências físicas e emocionais que vão passando de geração em geração.”
Essas falhas, o adoecimento e as práticas violentas que fazem parte da história de todo indivíduo precisam ser cuidadas. As técnicas terapêuticas existem para dar conta dos eventos, acontecimentos, traumas. Além disso, existem os traumas da sociedade que são negligenciados. Para Robertha, existe um trauma coletivo que “a gente atropela, passa por cima, não se fala sobre isso, não se cria espaços onde se possa elaborar. Porque os traumas vão fazer parte da vida. Tem os traumas de choque, de desenvolvimento. A diferença é como cuidamos disso abrindo espaços de reparação. São os espaços de reparação que possibilitam que possamos avançar e sair desse estado de adoecimento. A reparação possibilita a elaboração, a volta para uma vitalidade e abre espaço para aumentar a potência de cada um. Passo a me conhecer, a explorar caminhos pessoais e me articulo com outro. Estamos precisando de mais encontros respeitosos que aumentem a potência do outro e se tornem catalisadores de transformação.”
Na experiência dentro do museu, criou-se uma corrente entre os professores, os psicólogos, os amigos e os diretores de escola, unindo forças potentes e que, muitas vezes, vivem isoladas em sua realidade e voltadas para a rotina do cotidiano. O que se pôde perceber foi uma interação onde cada ambiente acabou tendo mais intimidade com outro. Da escola se sentir pertencendo ao espaço do museu, se sentindo bem vinda, acolhida e os terapeutas poderem viver esse espaço e pensar que ali poderia ser um dispositivo acessível às pessoas.
“Eu gosto de experimentar. Foi muito maravilhoso como profissional poder viver essa experiência. Eu cresci muito pessoalmente porque você também desbrava, se relaciona com pessoas incríveis que trazem questionamentos maiores, fortes e é provocada a pensar, estudar, correr atrás das coisas”. E conclui: “o desejo é muito potente. É a semente que vem dentro de um sonho. Alguns projetos podem ser muito utópicos e sonhadores. É preciso ter coragem de assumir os sonhos e devaneios e aos pouquinhos criando ampliações e reverberações. Precisamos de mais pessoas desejando e sonhando esses espaços de conexão, afeto, respeito e estímulo.”
Saiba mais ouvindo o episódio 55 do podcast da Newa: O uso da arte na expressão das emoções, onde Robertha Blatt revela como a arte é fundamental para a conexão e a importância do cuidado com a saúde mental em várias camadas da sociedade.
Robertha Haddad Blatt investiga e atua na interação entre arte, psicologia e educação. Há 20 anos, pesquisa a articulação de práticas terapêuticas e expressões artísticas, trafegando pelos papéis de educadora infantil, terapeuta de família, psicóloga, mãe e artista. Especializada em terapia de família e casal, terapia cognitivo-comportamental, psicologia positiva e terapia focada na emoção. Seu consultório ateliê disponibiliza diversos recursos multisensoriais que viabilizam outras manifestações além do discurso. Explora imersões em museus pelo mundo, observando a interação entre as pessoas e as proposições destes espaços. Interessa-se pelo estudo de terapia somática e bodynamic. Realiza palestras e encontros com os temas voltados para educação e psicologia. É escritora do livro “Arte em Movimento” e idealizadora do “Arte sobre Rodas”. O projeto fala sobre um caminhão usado para levar réplicas de obras de arte pelo Rio de Janeiro e democratizar a consciência artística.