Você sabe a importância de inserir os autistas no mercado de trabalho?

Você sabe a importância de inserir os autistas no mercado de trabalho?

Joyce Rocha é co-fundadora da aTip, startup que atua construindo pontes entre autistas e o mercado de trabalho. Acabou virando uma referência e assumiu isso como um propósito de vida. Quer mostrar ao mundo, à sociedade e às empresas a importância de diversificar a própria diversidade.

“Parece que os autistas fazem 18 anos e depois vão para Marte”. A frase é da UX designer Joyce Rocha que além de autista e ativista pelos direitos da comunidade é co-fundadora da Atip, uma startup que atua construindo conexão entre neuroatípicos, como preferem ser chamados, e o mercado de trabalho.

Chegar onde está agora só foi possível porque contava com uma rede de apoio grande, principalmente dos pais e de amigos próximos. O diagnóstico tardio quando já tinha 21 anos abriu um horizonte para entender seus comportamentos e emoções passadas. Antes disso, suas relações eram bastante conturbadas por não ter a compreensão exata de determinadas atitudes. Com isso, foi vítima de bullying na escola e lhe faltava também o suporte dos professores.“Eu sentia que não me encaixava na sociedade, no mundo, era excluída. Tinha uma coisa diferente em mim. Havia uma certa culpa porque eu não me sentia bem em nenhum lugar, o que me levou a um processo de depressão”, relata. “Com a ajuda do psiquiatra, pude entender como funcionava a minha cabeça e as minhas emoções. O sentimento de culpa desapareceu porque eu não estava errada. Era simplesmente porque as pessoas e nem eu entendia como funcionava o que é ser autista”.

O Transtorno do Espectro do Autismo, o TEA, é caracterizado por uma modificação no desenvolvimento neurológico cujos sintomas variam de acordo com o nível de comprometimento. Nenhum autista é igual a outro, mas há similaridades como a dificuldade de interação social e a presença de padrões restritos de comportamento, interesses ou atividades.

Hoje, ela se assume entendendo suas questões sensoriais, o que acaba contagiando todo o ambiente recebendo mais acolhimento e empatia. “Sei que vai ter momentos que vou ficar um pouco mal de acordo com o que o mundo me oferece. Sei também que quando eu voltar para casa vou ter carinho e abrigo. Isso me dá força para continuar no outro dia”, comenta e com o mesmo olhar, lembra da dificuldade de quem não tem esse suporte o que faz a pessoa neuroatípica ficar ainda mais em seu “casulo”.

Com sua atitude positiva, acabou virando uma referência e assumiu isso como um propósito de vida. Quer mostrar ao mundo que cada degrau que subiu não foi só fruto do seu esforço, mas de toda uma base de sustentação. Para ela, os projetos são apenas consequência do que ela é e do legado que quer deixar.

Atualmente, como sócia da empresa aTip, tem a missão de criar relacionamentos duradouros entre os mais de 2 milhões de autistas brasileiros e as muitas empresas que se interessam por, literalmente, diversificar a diversidade.

Conta que tudo começou quando um amigo sugeriu que participasse da primeira edição do hackathon Autismo Tech, criado para apoiar as famílias e os autistas do hospital conhecido como Pinel, no bairro de Pirituba em São Paulo. Joyce, que na época trabalhava como designer gráfica para uma empresa em Recife, deu uma palestra e acabou participando da competição. Foi uma das poucas atípicas que, de fato, pôs a mão na massa. Lá conheceu Caio Bogos que, apesar de não ser autista, também foi participar do projeto, acreditando bastante na ideia. Ele, que na época ainda era estudante de sistemas de informação na  FIAP, que organizava o evento, tinha o sonho de empreender em um negócio de impacto social. No final, em seus times sobraram apenas os dois e, segundo Caio, atualmente CEO da empresa, foi Joyce quem trouxe um recorte que norteou o projeto final da aTip. 

Hoje, os sócios, já estão na terceira edição em parceria com o próprio centro universitário Fiap e Inclusão Humanizada. O evento deste ano, além do hackathon pelo qual é conhecido, teve três trilhas de educação sobre carreiras em tecnologia desenvolvidas para pessoas neuro diversas e com foco em pessoas dentro do espectro autista. Foram mais de 14 projetos, dentre eles um para facilitar o diagnóstico e outro para criar um fone de ouvido que diminua os ruídos que é um dos maiores problemas de quem sofre de autismo.

O evento foi online assim como no ano passado que quase não saiu, mas com um consenso entre os sócios e os patrocinadores teve-se a possibilidade de ampliar a participação para pessoas de todo o Brasil sendo 42% delas de autistas. “O evento acabou sendo muito mais rico desde os entregáveis até as inovações. Fizemos adaptações para o contexto dos neuroatípicos, pois geralmente os hackathons são realizados durante 24 horas seguidas. Eu, como uma rata de participações, não me importo. Mas o autismo tem uma questão de sobrecarga natural e, então, dividimos em duas semanas de forma a respeitar as particularidades de cada um.”

Estes eventos, além dos projetos em si, abrem oportunidades dentro das empresas para a contratação, como já aconteceu com uma participante, e também para que os líderes possam conhecer a capacidade destas pessoas e quebrar as barreiras do preconceito.

“Temos um cuidado muito grande de ter um contato muito próximo com a comunidade e com as empresas que estão patrocinando. Trabalhamos muito com as relações. Sabemos que as empresas são estruturas, mas dentro dessas estruturas tem pessoas e temos de entender as necessidades de cada lado para fazer este match”.

Ainda hoje, é muito comum ouvir frases como “você é autista? Nem parece, é tão inteligente e comunicativa”, demonstrando a falta de conhecimento e a visão distorcida que se tem sobre o autismo. Por isso, é muito importante o diálogo para que quando um neuroatípico entre em uma empresa, ele seja realmente incluído no contexto que seja frutífero para ambas as partes.

“A diversidade sempre traz inovação. As empresas precisam criar produtos e serviços que atendam a todos os públicos. E isso não acontece se estão dentro de uma bolha. Só conseguimos pensar fora da caixa quando se tem mais pessoas diversas discutindo as dores e tentando encontrar propostas de soluções de uma maneira muito mais assertiva”, conclui Joyce.

E é exatamente este momento que a aTip também está vivendo. O objetivo é lançar no ano que vem uma ferramenta que permita o acesso das empresas com os profissionais atípicos. Na linguagem das startups, lançaram o MVP e estão validando a proposta de valor depois de muitas pesquisas, levantamento de hipóteses e insights. O produto, mesmo sendo digital, quer fazer toda a jornada dos dois clientes finais: os empregadores e candidatos que passa desde sensibilização dos gestores, do pessoal do RH que vai entrevistar, as questões particulares de inclusão. Um diferencial muito importante é a presença na equipe da psicóloga Elise Lisboa, doutora em desenvolvimento humano focada em autismo. Ela é responsável por fazer uma análise do perfil da pessoa atípica, conhecer mais sobre as suas características e, assim, a empresa também consegue ter um detalhamento melhor do que fazer para receber essa pessoa e qual função seria mais adequada dentro das habilidades apresentadas.

“Estamos fazendo de uma maneira muito manual no momento todo esse processo para entender o passo-a-passo dessa jornada. Não queremos lançar um produto e pronto. Nosso objetivo final é ter este espaço para trazer a pessoa autista para a plataforma, se candidatar nas vagas e as empresas terem este leque de opções para que encontre o que realmente precisa”.

Quer saber mais sobre o tema? Ouça o episódio 31 do episódio do podcast Somos Newa: Autismo: conhecer para aprender com Joyce Rocha.

Joyce Rocha é UX researcher, apaixonada por pesquisa em acessibilidade digital e experiência que podem mudar a vida das pessoas.  É co-fundadora da startup aTip, além disso é autista e ativista pelos direitos da comunidade. Atuante em iniciativas voltadas acessibilidade digital e pautas como neurodiversidade, gênero, raça e classe.