O carnaval dura mais que a licença paternidade no Brasil

Para Leandro Ziotto, fundador da 4daddy,  são dois os pilares que sustentam uma mudança efetiva para a equidade de gênero: a equiparação de salários e benefícios e a conscientização do papel do homem. A licença paternidade estendida é apenas o primeiro passo.

Eram quatro horas da manhã de uma terça-feira, de 2011. Uma criança de 4 anos chorava compulsivamente. Todos os “truques” tinham sido usados para acalmá-la. Até o Google foi acionado com a pesquisa “Como colocar uma criança de 4 anos para dormir”. Sem ter sucesso em ninar o menino e obter a informação que ajudasse, Leandro Ziotto não se resignou. Ele não aceitava a ideia de que não tinha capacidade de colocar um ser humano para dormir e que todas as dicas eram dirigidas somente às mulheres. Naquele momento, nasceu um pai e um empreendedor social. A criança em questão é Vini, filho da ex-mulher de Leandro, que se considera seu pai afetivo. A empresa é a 4Daddy, uma plataforma de conteúdo e formação parental.

“Percebi que era graduado e pós graduado, tinha um alto cargo no mercado financeiro, mas não tinha a menor competência, as habilidades básicas para cuidar de um garoto. Não sabia o que era higiene pessoal, o que ele comia, se podia dar coca-cola e hambúrguer”, comenta. “Os sonhos de criança de um homem não incluem a paternidade. Somos educados para jogar em time de sucesso, ser um rockstar, artista, astronauta. A paternidade não é sonho a ser alcançado. Ela vem no pacote da família, cachorro, papagaio, carro, casa no campo. Comigo não foi diferente e para outros homens também. Por isso, achei que precisávamos de um apoio que não existia”.

O administrador de empresa faz uma analogia do episódio como se tomasse a pílula vermelha entregue por Morpheus para o personagem Neo no filme Matrix. Na ficção científica, as pessoas vivem uma vida tranquila e perfeita. Contudo, elas não imaginam que o mundo de verdade é muito mais amplo e profundo que a ilusão que vivem. Para ir de um mundo ao outro, há duas opções de pílulas que funcionam como um portal. A vermelha mostra a realidade. Quem preferir manter o status quo, toma uma pílula azul.

“Tive a sorte naquela noite de tomar a vermelha. Diariamente, tem muitos homens que tomam azul. Gosto de falar que o meu papel não é passar pano para homem. Ao contrário. É chacoalhar os homens. Mas, também, entender que o homem não assume seu papel de pai só por má vontade, desvio de caráter. É porque não teve referência. A cultura, a indústria, a educação não mostram para ele como fazer. Os filmes que assistiu, os desenhos animados, as séries do Netflix falam, inclusive, para não ocupar esse espaço. “

Uma das mais graves consequências que vemos a despeito das desigualdades sociais é que 6,6% dos recém-nascidos tiveram seus registros feitos pelas mães entre janeiro e abril deste ano. Quatro anos atrás, em 2018, esse índice era de 5,3%, segundo dados divulgados pela Arpen Brasil.

O papel da 4daddy era, inicialmente, fazer que mais homens tomassem a “pílula vermelha”. Leandro então criou uma página do Facebook, que ainda funciona para a troca de ideias, dúvidas e temores.  A partir daí, as questões foram evoluindo e abrangendo novas áreas e players. Atualmente, é uma consultoria sobre parentalidade, gênero e economia do cuidado. Eles foram surgindo nessa ordem.

Ele conta que começou a estudar a paternidade e, com o passar do tempo, o conceito foi se ampliando de pai e mãe para uma rede de apoio. Usa a definição de família empregado pelo Unicef que é um grupo de adultos dispostos a criar e educar uma criança, seja qual for a sua formação. Passou, então, para a parentalidade e percebeu a ligação com a equidade de gênero. O outro fio puxado foi notar que ao falar de equidade de gênero, era crucial falar na economia do cuidado, em função da divisão sexual do cuidado. 

“O cuidado na cabeça da sociedade, no nosso imaginário popular é romântico, um ato de amor. É bonito, mas perigoso. A autora feminista Silvia Federici diz que o que o patriarcado chama de amor, ela chama de trabalho não remunerado. Acho muito provocativa a frase dela”, comenta. “O cuidado dentro do patriarcado da nossa sociedade machista foi remanejado para as mulheres. Se eu pedir para qualquer pessoa fechar os olhos e imaginar alguém praticando algum ato de cuidado, qualquer que seja, cuidar de alguém, da casa, uma vassoura, será sempre mulheres. Ao homem não foi dado esse papel de cuidado, ele não quer ocupar esse papel.”

O passo seguinte foi perceber que tinha de passar do discurso para a prática e isto envolvia o setor público. Ingressou, então, no Grupo de Trabalho Criança & Adolescente da Rede Nossa SP e do Homens pela Primeira Infância da Rede Nacional Primeira Infância, que atuam para influenciar políticas públicas sobre temas relacionados à infância, à juventude, aos direitos humanos, ao direito à cidade etc. Por fim, para fechar o ciclo e zerar a conta, entram as empresas que têm um papel fundamental nessa engrenagem.

Licença Paternidade – A porta de entrada para a resolução desta equação quando se fala nas organizações é a licença paternidade que pela lei trabalhista vigente é de 5 dias, menos que a duração do carnaval, comenta Leandro.

O desafio é muito mais complexo. A pesquisa “Licenças Maternidade e Paternidade nas Empresas”  aponta que 78,7% dos entrevistados consideram conhecer as regras da licença maternidade. Mas essa proporção cai para 62,1% em relação à licença paternidade.

O estudo, uma iniciativa organizada pelo Family Talks e 4daddy, com coordenação acadêmica de Camila Pires, Fabián Echegaray e Regina Madalozzo, apresenta dados que podem ajudar as empresas a entender os desafios que ainda precisam ser enfrentados para garantir tempo de qualidade para que seus colaboradores se tornem pais.

Entre as empresas respondentes à pesquisa, a maioria oferece com maior frequência benefícios extras às mulheres, quando comparado aos homens. Apenas 30% das empresas não oferecem benefícios extras para mulheres, índice que sobe para 53% quanto a benefícios extras além da licença paternidade.

Para Leandro, são dois os pilares que sustentam de forma realista, séria e responsável uma mudança efetiva para a equidade de gênero: a equiparação de salários e benefícios e a conscientização do papel do homem.

“Pesquisas mostram que dependendo do setor de economia, do estado do país em que a empresa está inserida já está havendo uma certa equiparação salarial e de posições de lideranças entre homens e mulheres. Agora, quando homens e mulheres se tornam pai ou mãe, não tem faixa etária, salarial, economia, lugar do mundo onde a separação não se torna extremamente diferente de forma cavalar”, salienta. “Se os programas de DE&I se preocuparem apenas com as mulheres, está fadado ao insucesso. As ações afirmativas com mulheres devem ocorrer como aceleração de carreira, reboarding na volta de licença-maternidade. Mas, paralelamente, não trabalhar com homem, o coleguinha do trabalho continuará sendo um desafio e uma perpetuação da desigualdade de gênero dentro das empresas.  Os homens fazem parte do problema e, obrigatoriamente, devem fazer parte da solução.”

Na execução devem constar comunicações internas, workshops, sensibilização da alta liderança, treinamento para o RH saber fazer a comunicação correta, para os líderes, o conselho administrativo, além de um profundo letramento. Na sua opinião: “o letramento e a sensibilização precisam andar junto. Porque engajamento sem letramento é só força de vontade. Letramento sem engajamento é petulância. Precisamos ter um letramento mínimo. Porque, às vezes, vejo pessoas muito engajadas no tema mas não tem o letramento mínimo e faz ações equivocadas gastando dinheiro onde não faz sentido.”

Com isso, é possível fazer o homem e o restante da organização começar a compreender as vantagens de uma licença paternidade estendida. Afinal, apenas 18,2% dos entrevistados do estudo mencionado acima acreditam que a licença parental ajuda a melhorar a qualidade da relação entre pais e filhos nos primeiros meses de vida ou adoção. Um dos resultados mais visíveis é o desenvolvimento de habilidades socioemocionais que são fundamentais para o mercado de trabalho. 

“Mudar o mindset  para entender que homem e mulher que exercem a paternidade e a maternidade impactam positivamente nos indicadores não só sociais, mas econômicos e financeiros da empresa. Homens que exercem a paternidade são homens que têm menor índice de assédio de violência simbólica e física nesse trabalho. Isso torna o ambiente de trabalho mais positivo, menos tóxico, menos machista e mais produtivo na empresa como um todo”, reflete.

Leandro ressalta que há uma questão até irônica com relação à licença paternidade: o medo que o homem tem de estagnar a sua carreira, de se sentir inválido, distante dos seus colegas de trabalho, irrelevante e fraco. Exatamente o mesmo das mulheres.

“No caso dos homens, a sua masculinidade pode ser questionada. O homem mede a sua masculinidade pelo termômetro da carreira. Se de uma hora para outra mudar a licença paternidade de 5 para 180 dias, um ano, os homens não vão sair na rua comemorando”, revela. “Vou contar um segredo: o trabalho de maternagem e paternagem é legal, romântico, lindo, mas também é um trabalho de alienação, chato. Tem vários fatores culturais, estruturais e institucionais que afastam o homem desse papel e naturalmente até fogem desta função”.

Empresas –  Muitas empresas estão se atentando para estas questões. Atualmente, há uma cobrança e uma pressão geral do mercado consumidor, clientes, fornecedores, das redes sociais para que tenham políticas de diversidade, equidade e inclusão. Existem movimentos como Mulher 360°, Instituto Ethos, Instituto Capitalismo Consciente que contribuem para criar um hub de organizações mais humanizadas e que estão avançando na letra S do seu ESG, indo para além das licenças paternidade e maternidade.

Certificados como a Great Place to Work que aumentam o índice de empregabilidade e reputação de marca empregadora, tem, há 3 anos, uma categoria dedicada à 1ª Infância. Em 2021, as vencedoras, em ordem de classificação, foram: Takeda Distribuidora, Cisco, Accenture do Brasil, Eurofarma Laboratórios S/A e IBM Brasil.

Um outro exemplo é o Grupo Boticário que oferece uma licença parental 100% remunerada para homens (cis e trans), casais homoafetivos e pais de filhos não-consanguíneos, além de mulheres gestantes que já usufruem de licenças normalmente mais longas de 120 dias no Brasil, na América e Europa, sendo obrigatória para quem tem filhos.

“A provocação que trago para as lideranças empresariais é decidir se a sua empresa vai pautar ou vai ser pautada. Porque fugir, ela não vai conseguir fugir desta agenda”, assegura Leandro. “O ESG está mostrando que as empresas precisam exercer um papel maior do que a produção de uma linha econômica tradicional . A economia não é só troca de valor monetário. É uma disciplina humana. Uma sociedade parental é uma sociedade que sabe cuidar dos seus próprios filhos, dos filhos dos outros e dos filhos de ninguém. Ao ter uma sociedade saudável, podemos imaginar uma sociedade equitativa, com justiça social e sustentável economicamente.”

Quer saber mais sobre parentalidade? Ouça o podcast Somos Newa: “Envolvimento masculino no trabalho do cuidado”

https://open.spotify.com/episode/5YFVOkNE2uVPET23Vdr552?si=fAi1MjE4QuOyb7W7XfLQVQ

Leandro Ziotto, pai afetivo do Vini, fundador da 4daddy, uma consultoria em Parentalidades, Equidade de Gênero e Economia do Cuidado. Integrante da Rede Nossa SP, Rede Nacional Primeira Infância e Coalizão Brasileira pelo Fim da violência contra criança e adolescente. Signatário da ONU Mulheres.