É tempo das lideranças assumirem o seu compromisso inegociável com a sociedade

Enquanto escrevo esse artigo olho o registro de óbitos de covid no Brasil com números cada vez mais assustadores: 3 mil mortes diárias. O sentimento de impotência é grande dada a crise social, política e sanitária que o nosso país está vivendo.

O Brasil foi o país que pior gerenciou a pandemia de covid-19 no mundo, de acordo com um levantamento pelo Lowy Institute, think thank da Austrália. Eles analisaram quase 100 países de acordo com seis critérios, como: casos confirmados, mortes e capacidade de detecção da doença

Somos um país extremamente rico, porém extremamente desigual. O Brasil ocupa o lugar de sétimo país mais desigual do mundo, segundo o último relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em 2019, ficando atrás apenas de nações do continente africano: África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique.

É inegável que a covid-19 evidenciou as desigualdades sociais e econômicas no Brasil e no mundo. Por aqui, a falta de políticas públicas e de acesso a serviços básicos, como saneamento e sade, agravou a situação dos mais pobres.

No país, mais de 13 milhões de pessoas vivem em comunidades sem saneamento básico, postos de saúde e mobilidade urbana adequados. Essa realidade torna-se ainda mais impactante quando pensamos que milhões de pessoas vivem sem as mínimas condições de isolamento social, higiene e alimentação.

A agência ONU Mulheres calcula que em 2021 haverá no mundo quase 435 milhões de mulheres pobres, 11% a mais do que se não tivesse acontecido a pandemia. Um retrocesso equivalente a quase 30 anos. No Brasil, 8,5 milhões de mulheres sairam do mercado de trabalho ao longo de 2020.

Para um país que foi fundado na base do genocídio da população indígena – segundo a Funai, tivemos uma redução de quase 70% da população de 1500 a 2010 – e que escravizou durante mais de três séculos a população negra desse país, a ausência de medidas eficazes sustenta ainda hoje uma situação de semiabolição no país.

De cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. Entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios de pessoas negras aumentou 18,2%, enquanto a das pessoas brancas diminuiu 12,2% no mesmo período. Ao fazer o recorte de gênero, o abismo se torna mais proeminente. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres brancas teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Os dados são do Atlas da Violência publicado em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em relação ao mercado de trabalho, a maior parcela de desempregados é da população negra, são 64,2% do total de 13,7 milhões sem ocupação, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos esse percentual era de 47,3%.

Sabemos também que negros são os que mais estão morrendo na pandemia. Realizado pela Vital Strategies e pelo núcleo de pesquisa Afro-Cebrap – do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, estudo mostrou que mortes por doenças – incluindo doenças respiratórias como a covid-19 – aumentaram 18% entre os brasileiros brancos no último ano, enquanto entre pessoas negras o crescimento chegou a 28%.

Portanto, dado o nosso contexto histórico, político, social e sanitário, discutir sobre Direitos Humanos no Brasil exige responsabilidade e profundidade e que a base do pensamento neoliberal, (isto é, a limitação do Estado para a consequente ascensão da liberdade individual, dos direitos individuais, da igualdade perante a lei, da proteção à propriedade privada e do livre comércio) precisa ser revisitada dentro do atual cenário de colapso que estamos vivendo.

A partir do momento que eu me entendo como um indivíduo isolado de todo contexto social, político, econômico e cultural e me autorizo a tomar decisões e a fazer escolhas que beneficiem único e exclusivamente a mim mesmo ou ao meu negócio é evidente que isso levará que aqueles que possuem mais possibilidades de escolhas terão mais liberdades individuais para tomarem suas decisões e, portanto, serão mais beneficiados e aqueles que possuem menos oportunidades estarão restritos aquela pequenina parcela de possibilidades de escolha.

As escolhas individuais não vão nos levar muito longe e temos que pensar em termos de interdependência, a gente começa a perceber que todos aqueles ideais liberais que tanto se prega principalmente em termos econômicos na prática ao invés de reduzir as desigualdades ele pode acentuar se não existir o olhar o sistêmico e crítico para a nossa sociedade.

É tempo das lideranças assumirem o seu compromisso inegociável com a sociedade dado o seu capital social, econômico, político e cultural que ocupam. Independentemente do setor e da posição hierárquica que possuem, líderes que se reconhecem responsáveis pelas funções sociais que carregam, tem engajamento crítico e político com as pautas de Direitos Humanos, reconhecem os seus lugares de privilégio e conseguem servir de forma a beneficiar pessoas que não necessariamente ocupam os mesmos lugares sociais que estas pessoas ocupam, devem mais do que nunca se reconhecer como parte inegociável da solução para a crise social, política e sanitária que estamos vivendo devolvendo e servindo à sociedade com o melhor que puderem.

Hoje não há mais espaço para lideranças que exercem poder sobre as pessoas, mas sim com as pessoas compreendendo que fazemos parte de um todo que é interdependente e que o impacto das minhas ações reverbera nos demais e que precisarei atender os meus sentimentos e necessidades sendo responsável com os sentimentos e necessidades dos outros para que as necessidades de todos sejam satisfeitas.

Podemos ser parte de uma solução e de uma cura. E a base dessa mudança tem a ver com uma cultura que a gente tem no mundo corporativo de competição, escassez, assimetria de poder, e que para uns estarem melhores outros necessariamente precisam estar em desvantagem.

Eu acredito que o recurso mais abundante que a gente possui é a capacidade humana de curar e cuidar. A gente tira os maiores sentimentos de alegria e felicidade a partir desse lugar de cuidar do outro. Mas a maior parte das empresas não tem a oportunidade de expressar o seu amor e cuidado.

E para isso acontecer, a vulnerabilidade é uma habilidade a ser aprendida por todos, em especial, as lideranças. Se a gente tem a liderança expressando de maneira genuína esse lugar de amor sendo responsável com os outros a gente consegue mudar as organizações. Temos que expressar o nosso amor para o mundo.