Cuidar é uma core skill

Para a psicóloga Cristiane Ferraz Prade, co-fundadora da Casa Paliativa, a humanidade só chegou até aqui e estamos vivos, pois fomos cuidados. O cuidar é uma habilidade que requer muitas outras pequenas habilidades somadas à capacidade da escuta ativa, da compaixão, da troca, do olhar. 

A morte funciona como um despertador para a vida. Convivendo com o cuidado paliativo, a psicóloga Cristiane Ferraz Prade vem aprendendo a colocar as coisas sobre perspectiva e ver como a vida é especial,  preciosa,  incrível e tem tanta coisa que a gente pode fazer com ela. Acredita que a proximidade com a morte nos empurra para uma revisão das nossas vidas e para buscarmos o verdadeiro propósito dela.

Ela é sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar, Prática e Ensino em Cuidados Paliativos. Atualmente está na vice-presidência da instituição e reside na Inglaterra, onde trabalha para o Royal Trinity Hospice, coordena o curso básico multiprofissional a distância da Casa do Cuidar e explora novas formas de expandir a filosofia de cuidados paliativos através do projeto Vital Kompass.

Com essa experiência, vem desenvolvendo o conceito do cuidar ser um core skill, ou seja, uma habilidade essencial contrastando com ideias que estamos mais familiarizados com os soft Skills e o dividiu em três esferas: o autocuidado,  cuidar de alguém ou de alguma coisa e se permitir ser cuidado.

De projeto da Casa Paliativa que abre espaço físico e virtual para troca de experiências de pacientes, nasceu o livro “Contém Esperança”, escrito por 46 pessoas que contam suas histórias sobre viver e conviver com uma doença grave mas que não as define.

Para o blog, a especialista em intervenções de luto e mestre em musicoterapia falou sobre saúde mental, pertencimento, acolhimento e tristeza.”Deveríamos dar mais respeito para nossa tristeza porque ela leva a gente a lugares que a alegria não leva e ajuda a fortalecer a vida”, argumenta.

O propósito está além do crachá

A nossa cultura e sociedade se identificam muito com a questão do nosso crachá, de um trabalho. Você chega em uma festa, reunião, bar, se apresenta para uma pessoa e logo depois do seu nome ela pergunta o que você faz. As vezes chegamos a colocar como mais importante do que o nosso nome, é a tarefa que executa na vida.

Existem tarefas que estão mais em sintonia com uma questão de propósito no sentido de provocar transformações no mundo, de mobilizar sociedade, de criar movimentos 

Existem outras tarefas que tratam de conservar e manter aquilo funcionando daquele jeito com a ordem já estipulada, mais mecânicas, braçais.

Eu entendo que o propósito pode estar em outros espaços além do crachá. É possível ter um propósito na vida relacionado com sua comunidade, família, espiritualidade que não está dentro do contexto do trabalho de segunda a sexta.

As empresas devem zelar pela saúde mental de seus funcionários

Existem tantas empresas. Cada uma tem sua cultura. De maneira geral, a maioria ainda está tentando descobrir o equilíbrio entre a saúde do seu colaborador e o lucro que recebe com aquele trabalho. 

A impressão que tenho é que estamos buscando um paradigma que não sabemos qual é.

Note se uma pessoa está trazendo lucro para a empresa, é uma pessoa valiosa. Por isso, preciso valorizá-la para que a roda continue girando. Falando em burnout, por exemplo, há dez anos as empresas simplesmente ignoravam o problema, culpando apenas o funcionário. Hoje, já percebe que tem uma responsabilidade sobre este quadro. Na outra ponta, o funcionário sente vergonha de não estar bem, de não conseguir mais fazer aquilo que sempre fez. É muito importante zelar pela saúde mental dos funcionários. Isso requer uma reestruturação muito grande e se não a fizermos, as consequências passam pela perda da produtividade e o aumento do turn over.  

Cuidar é uma core skill que requer outras pequenas habilidades

O que pode contrabalançar com o controle é o cuidado, não é a falta de controle. É possível controlar sem a necessidade de bater o ponto. Aliás, essas atitudes de controle limitam. O cuidar, por sua vez, traz um espaço muito mais amplo. O cuidar é uma habilidade que até agora está muito relacionada com a questão do feminino. É a  mulher que cuida dos pais quando eles estão doentes, dos filhos, escolhendo, por exemplo, quem é que vai ficar com eles quando ela não pode. Essas questões de cuidado ficam muito atreladas ao feminino. Só que o cuidar é uma  habilidade que todos nós temos. Estamos vivos hoje porque alguém cuidou da gente, pensando em termos de humanidade mesmo.

É uma habilidade que requer muitas outras pequenas habilidades, somadas à capacidade da escuta ativa, da compaixão, da troca, do olhar. Requer tempo e é caro o investimento de presença.

Soft skills é como ter um roteirinho, ser educado. Estamos falando de uma habilidade mais profunda, de um core skill que sabe responder a necessidade daquela  pessoa que está diante de você. Isso pede que você esteja presente para que você fique mais confortável com as suas imperfeições e com aquilo que você não sabe. Quando a gente entra nessa nessa forma de funcionar, favorecemos a conexão.

O pertencimento é fundamental para o ser humano

O pertencimento é fundamental para o ser humano. Ele oferece segurança de poder ser quem você é quando se está cercado de pessoas que te olham, reconhecem, validam e aceitam.

Não somos bons o tempo inteiro. Não fazemos certo o tempo todo. Quando a gente se identifica com isso é muito sofrimento, pois só temos valor quando acertamos. Precisamos ficar à vontade para poder revelar o lado que não sei, não consigo fazer.

Nas empresas é difícil pois o ambiente é muito competitivo. Quando sairmos para esse modelo mais colaborativo, de menos controle, mais cuidado, chegaremos a esta fórmula do pertencimento.

Deveríamos dar mais respeito à nossa tristeza

Ter coragem de falar o que estou sentindo gera muita potência e conexão.  Sensações boas de alegria, de amor, pedem para você atravessar um sofrimento. Hoje em dia, temos de estar 100% satisfeitos com pensamentos positivos e acabamos não dando permissão para fazer essa travessia. E aí é um lugar que vai ficando mais empobrecido porque ele fica sempre dependendo de uma satisfação externa. É curioso como na vivência próxima do sofrimento a gente vai ampliando a nossa possibilidade de felicidade, de alegria, de amorosidade. Deveríamos dar mais respeito à nossa tristeza porque ela leva a gente a lugares que a alegria não leva e ajuda a fortalecer a vida.

Cuidado paliativo é olhar para a pessoa e não para a doença

Cuidado paliativo visa ampliar a assistência para os pacientes que estão com uma doença grave e que ameaça a continuidade da vida. Não necessariamente um cuidado para fim de vida ou quando a pessoa está morrendo. Depois que a pessoa morrer, vamos cuidar do enlutado, da família. É realmente amplo e bastante complexo e por isso precisamos de uma equipe multidisciplinar. A ideia é olhar para a pessoa e não só para doença.

Convivendo com o cuidado paliativo, vamos aprendendo a colocar as coisas sobre perspectiva e ver como a vida é especial, preciosa, incrível e tem tanta coisa que a gente pode fazer com ela. Por isso, eu falo que a morte funciona como um despertador para a vida. 

A Casa Paliativa é um lugar de acolhimento 

A comunidade da Casa Paliativa está revolucionando o espaço de pacientes graves no Brasil. É um lugar de acolhimento e de apoio mútuo. É muito bonito ver as pessoas compartilhando sobre suas dificuldades e não recebendo sermão. As pessoas vão se dando permissão para serem mais leves numa situação que é muito densa de carregar uma doença sem possibilidade terapêutica de cura por meio da medicina. Quando se nutre compaixão no grupo é contagiante. Estão todos juntos nessa experiência. Cada uma vivendo a sua história, mas muito disponível para se apoiarem. E aí surgiu o livro “Contém esperança” com relatos pessoais dos moradores. É incrível!

Ouça o episódio 44 do podcast “Somos Newa” com o tema “A importância do cuidado na sociedade do cansaço”.

Cristiane Ferraz Prade é graduada em psicologia pela Universidade Mackenzie. Mestre em musicoterapia pela Universidade de Nova York. Realizou curso de aprimoramento em Intervenções em Luto pelo Instituto 4Estações. Atuou em grandes hospitais como: Beth Israel e Mount Sinai, em Nova York, Beneficência Portuguesa, Hospital Israelita Albert Einstein e Hospital Sírio Libanês em São Paulo. 

Sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar, Prática e Ensino em Cuidados Paliativos. Atualmente é vice-presidente da instituição e reside na Inglaterra, onde trabalha para o Royal Trinity Hospice, coordena o curso básico multiprofissional a distância da Casa do Cuidar e explora novas formas de expandir a filosofia de cuidados paliativos através do projeto Vital Kompass.