Cada um viveu sua própria pandemia

A doutora Dulce Pereira de Brito, coordenadora médica de saúde populacional do Hospital Israelita Albert Einstein, viveu a pandemia dentro do olho do furacão e acredita que a esperança é a mola propulsora para aumentar a resiliência dos brasileiros.

Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia. Naquela longínqua data, não imaginávamos que passaríamos por vários estágios que foram do medo inicial da morte, do desconhecimento, das incertezas para um segundo momento, de enorme cansaço físico e mental até, então, renascer a esperança com a chegada da vacina. As perdas foram muitas pelo caminho. O Brasil completou esses dois anos com 655 mil mortes.

E se não foi fácil para ninguém, imagine para os profissionais de saúde que continuam na linha de frente desta guerra. A OMS faz uma previsão drástica: 45% deles ficarão doentes nos próximos dias. Além do contágio pelo vírus, ansiedade, depressão e insônia são comuns entre médicos e enfermeiros. Isso levará a um quadro insustentável entre os que permanecerem na ativa.

Pesquisadores da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP escutaram de profissionais de saúde pública do país, em rodadas de entrevistas, que 80% deles sentiram que sua saúde mental foi afetada negativamente pela pandemia, mas menos de um terço afirmou ter recebido algum tipo de apoio para lidar com isso.

A médica Dulce Pereira de Brito tem enfrentado este desafio como coordenadora médica de saúde populacional do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos mais renomados do país, responsável pelo programa de promoção da saúde, bem-estar e saúde mental dos colaboradores e das empresas que contratam serviços corporativos do hospital. Ela ajudou na criação do programa Ouvir Também É Cuidar (OUVID), que oferece amparo psicológico aos funcionários e avalia os profissionais de saúde em cinco domínios: energia física, mental, emocional, social e espiritual.

Para ela, é muito importante respeitar a individualidade, pois cada um viveu uma pandemia. “O número de pessoas que tem no Brasil é o número de pandemias que vivemos”, afirma. “Mais do que nunca a compaixão e a empatia devem entrar em cena, intensificando ainda mais o lado humano em todas as relações. Será necessário expandir mentes e corações para entender que as experiências e necessidades de cada um são completamente diferentes.”

Destacamos aqui 5 perguntas nas quais a doutora Dulce discorre sobre o que a pandemia nos ensinou
e o que temos de cultivar como aprendizado nesta nova realidade que vivemos.

1) Como foi viver a pandemia de dentro do furacão?

Eu acho que a população brasileira e a mundial de alguma forma, em algum momento, conseguiu abrir a janela e olhar para dentro dos hospitais. De fato, não foi fácil. Faculdade alguma nos preparou para isto e hoje, eu, como médica e professora da Faculdade de Medicina da USP há tantos anos, também não me preparei.

Particularmente vivi a pandemia dentro do olho do furacão atuando em duas pontas. De um lado cuidando de pacientes graves internados nas enfermarias e dando aulas aos alunos residentes. Foram momentos difíceis que ficamos longe de nossos familiares e ainda presenciamos cenas como de casais sendo entubados, na qual um morreu e depois ainda tivemos de contar para o outro sobre esta perda. Faculdade nenhuma nos preparou para isso, não para perder pessoas por uma doença que é potencialmente evitável.

Na outra ponta eu estava cuidando de quem cuida, dos profissionais da linha de frente. Era como se a gente estivesse em uma trincheira no meio de uma guerra, cuidando dos feridos. Jamais imaginei que nós seríamos chamados para dançar uma valsa de vida ou morte depois do carnaval.

Foi a experiência mais incrível que já vi na minha vida profissional, sabendo que estava fazendo a coisa certa. Vi dor, sofrimento, morte, mas eu também vi muita força, compaixão, resiliência e atos de extrema bondade. 

2) Como o brasileiro reagiu a esta crise sanitária?

O número de brasileiros é o número de pandemias que nós tivemos. Cada um sabe onde apertou o seu calo, qual foi o seu momento mais crítico. Acho que esperança é o nome do Brasil ou o nome do brasileiro. Não é só porque a nossa bandeira tem verde. Pois, quando achávamos que estávamos terminando veio a onda forte da Omicron e nos colocou todos em alerta novamente.

Me lembrei da música Aquarela do Toquinho, que fala assim “o futuro é uma astronave que tentamos pilotar. Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar”.

O poeta conseguiu traduzir bem o que passamos. Pois, temos previsões matemáticas, estudos, indicações, mas não são certezas. Por isso que a esperança é o vento que move o nosso barquinho para frente e faz a gente caminhar. 

3) Ainda hoje estamos em uma fase onde podemos ver o copo meio cheio ou meio vazio, pois afinal depois da grande maioria da população vacinada, tivemos de conviver com mais uma onda com altíssima taxa de transmissão, apesar da enorme redução do números de mortes. Como buscar mais gás para momentos como este? 

Diria que nós precisamos fazer o que o nadador cansado faz: parar, levantar a cabeça um pouco para fora da água e respirar. Os profissionais da saúde ficaram praticamente dois anos sem férias. O jeito então é separar pequenas pausas no meio do dia, no fim de semana e à noite. Desplugar, desconectar, fazer um detox de notícias, evitar fake news, fazer pausas regenerativas. Nós precisamos descansar, olhar para frente sabendo aonde a gente quer chegar. Posso dizer que nós estamos indo para um mundo muito diferente daquele que a gente deixou lá atrás. Estamos indo para o mundo BANI: mais frágil, ansioso, não linear, complexo. Hoje, temos mais recursos internos e mais repertório até psicológico emocional para lidar com tudo isso, embora nossa energia esteja na reserva. A gente só precisa lembrar de recarregar lá pelo menos uma vez por dia como a gente faz com nosso celular

4) A impressão é de que sempre viveremos em uma montanha-russa de emoções. Como conseguiremos manter a nossa saúde mental neste estado constante de mudanças bruscas?

Vivemos nesse mundo volátil, hiperconectado. Diante desse novo desafio, vamos precisar de novas soluções. Talvez o repertório que nossos bisavós tinham para lidar com o mundo não serve mais. A gente precisa de novas competências para além daquelas. O meu convite é abrir essa mala ou essa caixa de ferramentas que temos desde que nascemos para lidar com os desafios da vida e aumentar o nosso repertório com múltiplas inteligências. 

Vamos precisar cada vez mais aprender sobre o gerenciamento das nossas emoções porque as adversidades estão ali. Haverá momentos em que elas serão mais ou menos intensas. Mas vamos precisar aprender a pilotar essa astronave. Acho que a gente precisa normalizar, falar sobre nossas emoções, quando não estamos bem. Pedir ajuda não é sinal de fraqueza, é sinal de força. Só os fortes conseguem declarar dentro do seu trabalho que não está bem. Vamos precisar devolver a nossa habilidade de escuta porque hoje ninguém escuta mais ninguém 


5) Sabemos que 70% do clima emocional de uma empresa ou até de um departamento é determinado pelo perfil do líder.  Quais as características as lideranças devem cultivar?

O mundo corporativo já vinha pedindo uma atenção maior no que tange à saúde mental. Não foi a pandemia que trouxe a necessidade da gente ter líderes mais compassivos que saibam escutar, que conseguem demonstrar sua vulnerabilidade, sem medo de dizer eu não sei, também estou aqui com uma taquicardia, ansioso. Eu costumo dizer que o mundo corporativo já vivia tal tensão emocional e era tão grande a incidência de pessoas com problemas de saúde mental, depressão, ansiedade dentro das organizações que as organizações já estavam sentindo esse impacto. As taxas de afastamento relacionadas à ansiedade e depressão estão entre as três principais causas de afastamento no Brasil e no mundo. As primeiras causas dependendo do lugar são dores nas costas. Logo depois ocupando a primeira ou terceira posição as questões de saúde mental. Então era como se fosse uma latinha de refrigerante que já tinha agitado muito e que a pandemia fez foi abrir a tampa e aí agora essa questão da saúde mental transbordou para dentro das organizações e está na agenda de todos os líderes.

Eles vão precisar se repaginar, se estruturar porque não haverá mais espaço para líderes tóxicos. Precisa de líderes de verdade mais inspiradores.  As startups estão aí nos ensinando que errar pode ser algo absolutamente produtivo. Para que a gente possa usar aquele erro como uma mola propulsora para ir para frente, se tornando uma pessoa mais generosa, amorosa, simpática e com mais compaixão com os outros e seus colaboradores. Entendendo que as pessoas, como disse anteriormente, cada um viveu uma pandemia. Cada um tem uma necessidade diferente. Então ele precisa ter um uma escuta muito refinada para poder entender a necessidade de cada um e poder dar para cada um o que esta pessoa precisa na medida do possível.

Ouça mais no episódio de número 40 do podcast “Somos Newa”: Quem cuida de quem cuida?

Dulce Pereira de Brito, coordenadora do Núcleo de Educação em Saúde e do módulo de Gestão de Doenças Crônicas do Centro de Promoção à Saúde do Serviço de Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo