“Ficar cego foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida”, diz o youtuber Marcos Lima

O jornalista, palestrante e youtuber do canal “Histórias de cego”, Marcos Lima, conta como lida com a cegueira causada por um glaucoma usando o humor para derrubar preconceitos e fala do projeto “Cego para cego” onde conversa com familiares e PcDs para dividir suas experiências.

 

No mês de Setembro tivemos duas datas comemorativas importantes para conscientizar sobre a importância da inclusão de pessoas com deficiência. Dia 21, celebramos o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência e no dia 22, o Dia Nacional do Atleta Paralímpico que visa homenagear, apoiar e divulgar todo o trabalho dos atletas paralímpicos.

Segundo dados do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 18,6% da população brasileira possui algum tipo de deficiência visual. Desse total, 6,5 milhões apresentam deficiência visual severa, sendo que 506 mil têm perda total da visão e 6 milhões, grande dificuldade para enxergar.

Fomos entender com o jornalista, palestrante e youtuber do canal “Histórias de cego”, Marcos Lima, como é a vida de cego. Seu canal já atingiu um público de 4 milhões e 12 milhões de visualizações de diferentes pessoas, com um total de 315 mil inscritos.

Ele nasceu com glaucoma congênito e foi perdendo a visão, apesar de ter passado por cerca de quinze cirurgias, até ficar completamente cego aos seis anos de idade.

Amante de esportes, jogou futebol de cegos por alguns anos, se tornou o primeiro brasileiro com deficiência visual a esquiar na neve em 2008, trabalhou na Copa do Mundo em 2014 e nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016.

Recentemente lançou um livro de crônicas com o mesmo nome do seu canal com passagens curiosas da sua vida, com o objetivo de mostrar para as pessoas que a vida de uma pessoa cega não é escura e triste o quanto pensam. 

1 – Qual o papel do esporte na sua vida?

O esporte é uma ferramenta fantástica para todo mundo. Ele ensina que tem tempo para as coisas, ainda mais nesta época de imediatismo, que tem que treinar muito para chegar a algum lugar, que muitas vezes o que vale é a jornada. Eu, por exemplo, estive longe de ser o melhor atleta do mundo de futebol de cego, mas a experiência foi muito importante para mim, ainda mais quando era criança. Como uma pessoa com deficiência, escutei muito não. Não pode correr, brincar, jogar. Só que o esporte te leva a uma consciência corporal que te ajuda a andar na rua, desvencilhar dos obstáculos. É mais difícil enfrentar os bueiros abertos, os orelhões, os postes de sinalização, os carros mal estacionados do que enfrentar os adversários, as defesas dentro do campo. Depois tem a questão da família, que começa a entender também o seu potencial e, por fim, toda a sociedade.  Por exemplo, quando se se assiste a competições como os Jogos Paralímpicos, primeiro vem o susto: como as caras fazem isso? Ai, a admiração. E por fim, se começa  a torcer pelo Brasil, independente se o atleta era PcD ou não.

2 – Você atuou como jogador do futebol de cinco e viajou para o exterior. Como começou a sua relação com o futebol? 

Sou um amante do futebol e jogava quando enxergava um pouquinho. Depois para fazer barulho, colocava dentro de um saco plástico. Não perdia uma partida com sol a pino ou chuva. Quando fiquei completamente cego, conheci o futebol de cinco que a bola tem um guizo e era mais fácil. Recentemente, nos Jogos Paralímpicos teve até transmissão para TV aberta ao vivo da final de futebol de cinco e tivemos a oportunidade de ver o Brasil novamente campeão e em cima da Argentina . Esta rivalidade serve para qualquer categoria. Joguei na seleção, mas não fui aos Jogos pois coincidiu com minha entrada na faculdade e preferi me dedicar aos estudos.

3 – Quais são as principais dificuldades para a inclusão de uma pessoa com deficiência visual nas empresas?

Trabalhei em duas empresas que tinha cargos compatíveis com a minha formação e mesmo assim passei por preconceitos e discriminação. Em um assessoria de imprensa, na hora que tinha que acompanhar um diretor em uma entrevista sempre escolhiam outro colega com medo da reação do cliente em ser atendido por um cego. Comparo a ascensão da pessoa com deficiência com a  luta das mulheres. Primeiro, tinha que provar que podiam trabalhar, depois que eram capazes de ter um cargo de gerente e agora já podem participar de conselhos e serem CEOs.

Para uma pessoa cega trabalhar, é preciso só de um software e entender as capacidades de cada um. Eu posso não ser capaz de fazer uma boa apresentação de powerpoint, mas sou bom em dar palestra As empresas acham que não sei fazer uma coisa porque sou cego. Às vezes não sei fazer alguma coisa porque simplesmente não sei. Não sei cozinhar, mas sou um ótimo orador. Isto vale para qualquer pessoa. Cada pessoa possui talentos próprios independentemente de ter uma deficiência ou não. 4 – Como vê a evolução do tema diversidade, equidade e inclusão?

Infelizmente, ainda temos de lutar por coisas que se consideravam ganhas. Por exemplo, a Lei de Cotas têm 30 anos e dois anos atrás foi mandado para o congresso uma proposta para flexibilização que não foi nem pautado. Mas a forma que que se encontrou de driblar foi aumentando as classificações de como se considera a pessoa com deficiência. Agora, pessoas monoculares, que não enxergam de um olho, são consideradas pessoas com deficiência. Na hora da contratação, o que uma empresa vai considerar: quem é totalmente cego ou uma pessoa monocular que enxerga totalmente de um olho? Daqui a pouco haverá cotas dentro de cotas. E teremos que buscar uma situação parecida com o basquete onde há uma média e os times são compostos por pessoas com vários tipos de deficiência. Ainda na questão dos PcDs, por causa da lei de cotas, as empresas só contratavam para cumprir a meta e ainda com cargos e salários baixos. Às vezes, a pessoa nem precisava ir lá era só bater o ponto. Aos poucos, apareceram os primeiros casos de gerência, mas há muito o que evoluir. A empresa não é um órgão descolado da sociedade, é formada de pessoas que ainda são preconceituosas.

5 – Como é seu trabalho nas redes sociais. Você sempre está bem humorado e com vídeos divertidos?

Meu trabalho nas redes sociais é orgânico. Eu uso os comentários das pessoas para responder perguntas básicas de como faço para ir ao banheiro, viajar, tomar banho. Uso o humor para ir explicando como faço para viver sozinho, pagar minhas contas. Se uma pessoa se deu o trabalho de botar um comentário é porque quer saber e está disposta a quebrar preconceitos. Se as 12 milhões de pessoas que viram o canal até hoje tratar uma pessoa com deficiência com menos preconceito, valeu a pena. O humor é uma forma de chegar ao coração das pessoas porque eu sou assim. Claro que tenho momentos de tristezas mas não estão ligadas ao fato de eu ser cego. Sou um cara muito alegre, aliás mais alegre do que a média e procuro transbordar isto nos vídeos.

6 – Uma das suas postagens no seu canal de no YouTube que teve milhares de acessos trata das 1dez “vantagens” de ser cego. Como explica este sucesso?

Ficar cego foi a melhor coisa que aconteceu comigo. Nasci com glaucoma congênito, mas uma criança não fala, né? Minha mãe foi percebendo que eu não conseguia ficar de barriga para cima no carrinho de bebe, escondia o rosto. Certa vez, um médico olhou pra mim e disse que precisava de uma cirurgia urgente. O glaucoma nada mais é do que a pressão que vai aumentando o líquido no olho e o faz crescer até atingir a aorta ou explodir.

A cirurgia foi para escoar este líquido. Foram ao todo 16 cirurgias, vários exames com sedação. Para uma criança não é um processo tranquilo. No processo de recuperação tinha de ficar 12 dias dentro de um quarto escuro, fazendo curativo no olho, alguém segurando a minha mão para eu não arrancá-lo. Além disso, a fotofobia é um incômodo muito grande diante da luz, então tinha que brincar no quarto escuro, de ficar de cabeça baixa. No fim das contas, quando perdi completamente a visão foi um alívio. Por isso que digo que foi a melhor coisa que aconteceu comigo foi ficar cego.

7 – Como é o projeto “Cego para cego”?

Tenho um projeto que inscrevi em uma universidade americana na qual converso com familiares e pessoas com deficiência por telefone, e-mail, como ela quiser. O projeto se chama  “Cego para cego”. Consegui justamente uma verba para poder me dedicar a este trabalho, já que sou autônomo. Estou me sentindo muito feliz, pois estou conhecendo muitas outras realidades de pessoas e dando um empurrãozinho para que as pessoas consigam ter independência e autonomia como eu.

8 – Se você tivesse o poder como político ou mago, o que faria em prol da inclusão das pessoas com deficiência?

Eu daria acesso à informação a quem não tem deficiência e daria acesso total ao estudo a quem tem deficiência. Em termos de deficiência, nós somos pessoas com defeitos e qualidades que não estão ligadas ao sistema. Eu fiz o canal do YouTube não para voltar a enxergar, mas para que as pessoas possam nos enxergar de uma forma diferente. O problema do preconceito é a falta de conhecimento. O preconceito é a forma que nosso cérebro usa para preencher lacunas do que não sabe. Se eu for convidado para ir ao Japão, vou imaginar mil coisas sobre o país e formar preconceitos. Para barrar isso, vou atrás de informação, pesquisas. Quando trabalho nas redes sociais mostrando como é a vida de uma pessoa com deficiência é para quebrar esses preconceitos e levar conhecimento. Agora a discriminação parte de informações erradas ou de ideias pré concebidas para separar classes de pessoas e para tratar pessoas de modo diferente. 

Ouça a entrevista completa no episódio 27 do podcast “Somos Newa”.

Marcos Lima é jornalista, palestrante e youtuber do canal “Histórias de cego”, nasceu com Glaucoma Congênito e foi perdendo a visão até ficar completamente cego aos seis anos de idade. Recentemente, lançou um livro de crônicas com o mesmo nome do seu canal com passagens curiosas da sua  vida. Seu canal  no Youtube já atingiu um público de 4 milhões e 10 milhões de visualizações de diferentes pessoas, com um total de 320 mil inscritos.