Lua Barros têm consciência que a culpa materna é resultado de regras sociais e preceitos religiosos feitos por homens e por isso não se abala com ela. Como educadora parental auxilia os pais na construção de uma educação baseada no diálogo, na escuta ativa e em aceitar os erros e acertos durante esta jornada
Como se aprende a ser mãe? É possível estabelecer uma educação com base no diálogo e na escuta ativa? Por que se carrega tanta culpa na maternidade? O que fazer para as crianças desgrudarem do celular?
Essas são algumas das questões que Luanda Barros lida todos os dias trabalhando como educadora parental.
Sua profissão é recente e surgiu com as demandas e transformações no século XXI. Para ela, veio como forma de propósito. Mãe de 04 filhos : João, Irene, Teresa e Joaquim, companheira de Peu há 15 anos, autora do livro “Eu não nasci mãe: O que precisei desaprender para aprender a ser mãe”, começou a se interessar pelo tema depois da segunda gravidez.
O primeiro contato foi com a disciplina positiva, um conjunto de ferramentas criado pela norte-americana Jane Nelsen no final da década de 1970, que traz instrumentos para melhorar a relação de pais e filhos. Depois, em Portugal, se especializou em parentalidade positiva, que defende a necessidade do desenvolvimento socioemocional e do equilíbrio emocional para promover uma boa relação dos adultos com as crianças. Estudou também a comunicação não-violenta e fez uma formação em inteligência emocional.
Entende que a formação é um processo e continua estudando, aprendendo e agora, ensinando. Ano passado se juntou com a psicanalista Elisama Santos e montaram um curso de um ano para formar novos educadores parentais.
Nesta entrevista, a especialista emocional fala sobre a parentalidade positiva, dilemas e desafios da criação e como esta mudança de paradigma na educação pode transformar as organizações.
1) Você conta que muitos lhe perguntam qual a sua formação e que entende que isso é um processo e não um papel pendurado na parede. Já aprendeu a ser mãe?
Ser mãe é um gerúndio. Eu vou sendo mãe dos meus filhos nessa relação contínua e longeva. Espero ter com eles um olhar mais atento. Estou interessada em saber quem eles são, em saber quem eu sou. Isso facilita bastante o exercício da minha maternidade. Acho que é pretensioso dizer que eu aprendi a ser mãe, mas fico contente que estou sendo mãe.
Meus filhos são muito meus num determinado momento. Depois eles não são mais. Vão sendo de outras pessoas, de outras relações, do mundo, da escola, da pessoa amada, dos amigos, na medida em que forem crescendo. Vejo a maternidade como uma jornada de mão dada com o filho, interessada em saber quem ele é e as coisas que vão atravessar no caminho dele para que eu consiga cuidar da melhor forma.
2) Você propõe uma educação à base do diálogo e dos princípios da comunicação não violenta. Como tem sido esse processo na sua célula familiar?
O entendimento sobre a importância do diálogo e das nossas emoções é o que pode transformar a maneira como agimos. O mundo está como um relógio, no tic-tac, pedindo essa transformação e ela pode vir a partir dessa célula primordial que é a família.
Família onde há um espaço de diálogo, de compreensão, sem uma vontade de bater, sem a necessidade de punição, de vingança. Porque a punição, na verdade, é uma vingança.
Olho para minha família, para as decisões que a gente tomou e me faz muito bem para a pessoa que eu quero ser para o mundo. Agora tem um lado egóico de pensar que essa relação que tenho com os meus filhos vai salvar o planeta. Não é isso. Acredito que quando se transforma individualmente, se transforma também os espaços onde ocupa e começa a ter uma grande onda de reverberação. Dentro de casa, quero ter uma relação forte que o sustenta com os erros e vacilos deles e os meus também.
3) A frase “Quando nasce uma mãe, nasce a culpa” , se tornou tão popular nos últimos anos que é difícil alguém que não tenha se deparado com ela em algum momento. O que fazer para não assumi-la com uma verdade absoluta?
A culpa materna é um tratado com muitas camadas e lentes. Eu sinto pouquíssima culpa porque entendi que existe uma maternidade socialmente difundida e desejada que estabelece um monte de regra sobre a qual as mulheres nem pensam. Quando se tornam mães já tem um roteiro mental que acreditam que precisam seguir e uma vez que falham em algum desses checklists, acessam a culpa. A culpa existe porque existe um ideal materno propagado a partir de conceitos religiosos e regras sociais feitas por homens. Tenho consciência disso e me revolto. Quando a culpa chega, eu encaro ela de frente e não a deixo me pegar.
A mãe que se cobra muito que quer ser perfeita e cumprir à risca essa lista,
tem muita dificuldade de lidar com o sofrimento desse filho. A dor faz parte do processo de amadurecimento da criança. Ficamos tão focados no que é a felicidade dessa criança que não entendemos que o que realmente nos mobiliza é um desejo, uma projeção de que alguém pudesse ter cuidado da sua felicidade por nós. A mãe que leva isso como uma missão está projetando uma enorme falta de amor, carinho e amparo que não teve. Não é responsabilidade de ninguém, pouco menos de pai e mãe de fazer um filho feliz. A responsabilidade dos pais é cuidar, amparar e atravessar os momentos tristes com eles.
4) A OMS (Organização Mundial de Saúde) referendou que “vício em games” entra para a classificação internacional de doenças, como um transtorno mental. Como equilibrar o uso destes aparelhos em uma época de hiper conectividade?
A próxima pandemia será esta relação que temos com a tela. As crianças e adolescentes estão neste envolvimento com as telas, porque os pais estão igualmente envolvidos com elas. Os adultos estão muito apegados ao celular, computadores e estão adoecidos. Imagina quando se está gripada, prostrada numa cama, com febre, com dor no corpo. Só conseguimos cuidar do outro, se nos cuidarmos. Se estamos com uma relação intensa com um celular, um aparelho eletrônico, não vamos conseguir dimensionar o mal que isto causa e nem colocar limites preestabelecidos para que seu filho tenha uma relação mais equilibrada com a tela.
A interação com a tela prejudica, pois ao invés de ampliar o repertório, restringe cada vez mais nosso vocabulário, posição política e emoções. O algoritmo é um arroio de cavalo que não vai mostrar nada de diferente do que buscamos. Ficamos sempre nesta zona confortável. Além disso, a tela me distancia de encarar a dificuldade que é ter filho em casa quando se tem de trabalhar, estudar, limpar, cozinhar. É difícil mesmo. É uma cadeia de componentes quase perfeita, porque a tela me alivia de ter que lidar com aquela criança e me dá tempo para o que eu preciso fazer em casa ou no trabalho.
Estamos muito angustiados e deprimidos como sociedade. O que se tem feito, piora este estado. Ao ficar dando scroll sem fim no Instagram vendo gente feliz, pensando que é distração, na verdade, é uma prisão que contribui para o adoecimento psíquico.
É viciante. Os pais nem gostam de usar esta palavra. Mas é uma relação viciosa, de causa e efeito para te prender e não fazer pensar. Uma criança precisa de uma regulação de um adulto a partir de combinados. Mas os pais também devem dar exemplo e deixar os aparelhos de lado. E se realmente precisar acessá-los explicar o porquê.
5) Na chamada sociedade do cansaço, não encontramos tempo para parar e ouvir e nem ser ouvido pelos nossos chefes, colaboradores, pais. Como abrir espaço para realmente ouvir e entender as necessidades das crianças?
Precisamos entender a importância da escuta. Escutar o outro é um exercício poderosíssimo. Escutar sem querer resolver o problema do outro, tirá-lo daquele sofrimento. Percorremos um caminho entre extremos. Saímos de relações absolutamente autoritárias e silenciadoras para uma outra ponta que colocou a criança como sendo o centro da relação familiar. Quando falo em ouvir o que a criança diz, preciso fazer uma ressalva. Isso não significa fazer o que ela quer.
Este espaço de escuta e de diálogo não tem de ser um espaço de solução e sim de elaboração. É um lugar de troca, de desaguar sentimentos, de não ser julgado. Muitas vezes, não precisamos que a pessoa que nos ouve resolva nossos problemas, mas apenas dê conta do que estamos sentindo e dividindo naquele momento. Precisamos abrir espaço de escuta para que se cuide verdadeiramente. Por isso ele precisa estar garantido dentro das famílias e das organizações.
A sociedade da produtividade trouxe uma demanda que temos de resolver tudo a qualquer custo. Os pais sentem essa necessidade de fazer o filho feliz. Se ele traz um sofrimento, a mãe se acha tão poderosa que parte atrás de uma solução. Não é respeitoso porque o que está se sentindo, não necessariamente, precisa ser resolvido. É uma atitude muito narcisista sair resolvendo. Ouvir já é suficiente. Livre desta pequenez que existe nesse gesto tão grande que é ouvir o outro.
6) Uma questão que estamos enfrentando atualmente são os casos de síndrome de burnout, resultado, muitas vezes, da falta deste lugar de escuta. O que fazer para minimizar seus efeitos?
O burnout, diferentemente da depressão e da ansiedade, é a capacidade de se manter funcionando diante de todas as catástrofes, sensações e emoções cada vez mais desconectadas daquilo que sentimos. É como o fog em uma estrada. Não consigo ver o caminho, mas sigo porque me disseram que é isso que tenho que fazer. Há essa banalização. Pois conseguimos encontrar um jeito de burlar nossas emoções e funcionar por mais tempo. É verdade que esse tempo é finito porque o corpo é sábio. Ele vai reclamar da existência deste piloto automático e muitas vezes, cobrar caro. Os cabelos das mulheres caem no banho e acham que é normal. Vamos minimizando até que surja algo pior, como um câncer, por exemplo. Não dá para ficar esperando o fim de semana, as férias. Todo dia devemos nos questionar como estamos nos sentindo. E podem ser pequenos gestos. Observar como acordei, como fui dormir. Nos permitir chorar, gritar, dar uma gargalhada e que haja um coletivo de apoiando. Nas empresas, não é só se juntar para bater metas. Ali tem um coletivo que pode se cuidar. Sou um otimista radical. Acho que é possível ser assim. Precisa só de algumas pessoas em lugares estratégicos para puxar essa corrente.
7) Como levar essa base familiar acostumada ao diálogo para dentro das empresas?
Não conseguimos ser uma pessoa no trabalho e outra em casa. Precisamos começar a entender que não tem dentro e fora. Tem dentro e dentro, fora e fora, dentro e fora, tudo junto e misturado. As pessoas tentam fazer isso e até conseguem por um determinado momento pagando um preço emocional muito alto. Somos uma mistura de profissional, pessoal, maternidade, de todos serem integral. Entender essa integridade é muito importante para quem está em processo de liderança. Assim é possível abrir espaço de uma cultura organizacional para que o choro não precise ser motivo de desculpa. Quando um adulto chora, a primeira coisa que ele faz é pedir desculpa pois se constrange diante daquela emoção. Estamos muito distantes desse entendimento dentro das organizações. Porque, de alguma forma, achamos que é mais produtivo não pensar e não se deixar levar por aquilo que sentimos. Esta ideia é completamente equivocada porque se não se deixa levar pelo que a gente sente, ficamos parados.
É muito parecido com o que acontece em casa com o choro da criança. A primeira atitude que vem à mente dos pais é encerrar aquele comportamento que está atrapalhando todo fluxo da casa. Mas a criança está tentando dizer alguma coisa. E os cuidadores precisam botar a mão na massa e ajudar essa criança a acessar isso que está sentindo para que consiga sair daquele estágio de vulnerabilidade e de transbordamento emocional para conseguir se recompor. Faço muitas associações com a maneira que a família encara as emoções e o mundo corporativo. Tem muita similaridade. Só um espaço de diálogo seguro faz com que se comece a compreender certas atitudes. Como cultura organizacional, cuidar das emoções é fundamental para reger a produtividade, eficiência e longevidade dos funcionários. Temos um longo caminho pela frente nesse sentido.
Quer saber mais ? Ouça o episódio do podcast Somos Newa com Lua Barros: “As emoções das crianças sob uma nova lente”
Lua Barros não nasceu mãe e escreveu sobre esse intenso processo no seu primeiro livro. Tem a sorte de habitar o mesmo tempo que João, Irene, Teresa e Joaquim, seus 4 filhos. É companheira de Peu há 15 anos e também trabalha como educadora parental e especialista em inteligência emocional.