“Se você não está contribuindo para a mudança, está trabalhando para perpetuar a situação”

O publicitário Ken Fujioka tem dedicado os últimos 10 anos em enxergar seus privilégios e tentar transformar essa consciência em ações. Uma delas foi a pesquisa sobre assédio na área de publicidade que reforçou o que já se previa: 51% das mulheres já tinham sido assediadas de forma moral ou sexual.

Ken Fujioka faz parte do 1% da população mundial que ele considera privilegiada. Sócio-fundador da ADA Strategy, começou a se perceber neste lugar há cerca de 10 anos, primeiro como homem, depois como hetero, cis gênero, de classe média alta, empresário, do Sudeste, de São Paulo, de uma família estruturada.

O privilégio é aquilo que é invisível para aqueles que possuem. Se você não tiver intencionalidade para enxergá-lo, não vai acontecer nada. Mesmo com intenção é um processo cumulativo”, comenta o publicitário. “Qual é o lado ruim de ter tantos privilégios? É um processo doloroso em que você se descobre ignorante. O lado bom é que depois que você enxerga, nunca mais vai conseguir desenxergar. Essa nova lente estará presa nos seus olhos para sempre. Você entende melhor os outros privilégios, os seguintes, os próximos.”

Ao se ver nesta posição, notou também que não bastava essa consciência.  Era necessário partir para a prática. “Na verdade, nem sempre você quer agir. Quero curtir um churrasco, ir para a casa de campo, da praia. Não quero ter que ficar trabalhando com uma sociedade mais justa. Isso dá um trabalho de cão. Mas quando você enxerga para valer, imediatamente passa a ter essa missão. E toda vez que não estiver nela, vai se sentir culpado de alguma forma se não fizer nada”, afirma o estrategista com mais de 30 anos de experiência em marketing e comunicação.

Por isso, abraçou várias frentes para assumir uma postura mais consciente de seus privilégios. Uma delas, ao lado de Ana Cortat, foi a coordenação e divulgação da primeira Pesquisa sobre Assédio no Mercado de Comunicação, realizada pelo Grupo de Planejamento, da qual é co-fundador, além de ser mentor para startups pela Endeavor Brasil e membro de conselhos de startups.

Realizada em 2017, revelou que na sua área de atuação, 51% das mulheres já tinham sido assediadas de forma moral ou sexual. 98% delas tiveram como um agressor um homem e 7 em cada 10 homens também relataram serem vítimas de assédio por parte de outros homens.

O levantamento, feito pelo Instituto Qualibest, especializado em pesquisas online, tinha abrangência nacional. Foram quase 2.000 respondentes. Porém, a maior parte delas, 1400 se concentrava na região metropolitana de São Paulo, sendo que mais de 60% eram mulheres. 

“Para a surpresa de ninguém, as mulheres são de fato as vítimas e os homens são de fato, estruturalmente falando, os agressores reforçando uma estrutura que reflete o sexismo,” reforça o host e co-fundador do podcast Naruhodô. “A área da publicidade é bastante emblemática, pois, historicamente, tem um ambiente de trabalho mais informal do que as outras categorias de negócios. Você tem uma linha tênue que separa a brincadeira do desrespeito. Durante muito tempo essa linha estava esticada para o lado do deboche, da piada, quando, na verdade, era mesmo desrespeito.”

Apesar de ser tipificado como crime no código penal, não se via denúncias de assédio sexual partindo de colaboradoras de agências de publicidade. Mais comum ainda eram os casos de homens assediando explicitamente, verbalmente as mulheres, inclusive fisicamente. Ken cita que havia empresas que premiavam a mulher mais gostosa e as fazia desfilar pelos corredores.

Para sanar qualquer dúvida com relação aos conceitos, no começo da pesquisa era apresentado uma definição legal do que era assédio moral e do que era assédio sexual para que a pessoa, primeiro, fizesse uma auto-análise de si e se de alguma forma já tinha sofrido ou provocado alguma agressão deste tipo.

Vale lembrar que a primeira menção ao assédio moral na justiça brasileira é de 2002 e, até hoje, o Brasil não tem uma legislação federal sobre esse tipo de violência. Com o hiato, a jurisprudência exige provas, além de relatos de testemunhas e a comprovação de uma prática reiterada da violência. Na prática, menos de 1% das denúncias de assédio moral foram acatadas pela justiça trabalhista brasileira.

Agora, a Bancada Feminina na Câmara dos Deputados pressiona para que o Estado Brasileiro ratifique a convenção 190 da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, que trata do combate à violência e ao assédio nos ambientes de trabalho, suprindo, assim, uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro. 

Com larga experiência na área de comunicação,  Ken foi sócio da agência Loducca e vice-presidente de planejamento & estratégia digital da Thompson, exerceu por duas vezes o cargo de presidente do Grupo de Planejamento, que congrega profissionais de estratégia de comunicação especialmente que estão trabalhando em agências. 

Em um evento da entidade, em 2016, aconteceu uma palestra com mulheres que haviam chegado de Nova York e assistido por lá um painel sobre a questão da diversidade de gênero, chamado 3%, pois esta era a porcentagem de mulheres em cargos de liderança criativa em agências americanas. O objetivo era mostrar os avanços nos EUA e trazer a discussão para o Brasil. 

“Na parte de perguntas, uma mulher levantou, falou sobre as diferenças entre os dois países, lembrou que estávamos na lama, relatando vários casos de assédio. Pedimos, então, para a platéia levantar a mão se também tivesse vivido situações semelhantes e praticamente a sala inteira se manifestou. Diante daquilo, o que disse era que lamentava muito e que me comprometia a fazer algo a respeito mesmo sem saber o quê”, relembra o CEO.

Em 2017, já como conselheiro do grupo de planejamento, fez um approach com profissionais da imprensa especializada na área de comunicação para saber porque este assunto nunca tinha sido tratado pelos veículos. Um dos editores consultados comentou que para publicar precisava de histórias como das atrizes americanas que denunciaram Harvey Weinstein, resultando no movimento #MeToo.

“Nos Estados Unidos havia atrizes milionárias que estavam dispostas a falar, pois mesmo que não conseguissem mais trabalho, tinham dinheiro para duas gerações. Não é o caso das publicitárias aqui do Brasil, especialmente para quem está começando e que trabalha na base da indústria,” pontou o sócio e conselheiro na startup OnTheGo.com.br, plataforma de pesquisas online por meio de chatbots. “Tive um insight: se não tem denúncias, vamos aos números. Jornalistas adoram números e assim nasceu a pesquisa e toda sua repercussão graças ao trabalho de muitos voluntários.”

Para a equipe que trabalhou no projeto, o que foi mais marcante foi o lado qualitativo da pesquisa. As pessoas foram convidadas a contar os casos de assédio moral e sexual que sofreram. Eles colheram relatos, inclusive, com nomes que foram retirados da análise. 

“Foram mais de mil casos de assédio moral e sexual que li um por um. Depois desta experiência traumática, é difícil sair a mesma pessoa do outro lado. Durante um ano,  eu e Ana, apresentamos esta pesquisa em mais de 60 eventos, sempre voluntariamente. Paramos por uma decisão pessoal, pois não tínhamos mais saúde mental para seguir em frente com as apresentações. A cada uma delas sofria, pois começava falando como fui algoz de vários casos. Tivemos  um princípio de burnout por conta da própria pesquisa”, relembra.

Masculinidade – Paralelamente, Ken estava se relacionando com mulheres feministas e tomando consciência de que o problema era gerado pelos homens, sendo assim, eles precisavam fazer parte da solução. 

Nesta época também conheceu o Pedro de Figueiredo, fundador do MEMOH – a palavra homem ao contrário – que congrega homens de todo o Brasil — de diversas etnias, orientações sexuais e faixas etárias — para discutir masculinidades em prol da equidade de gênero e passou a integrar a equipe de “caseiros”, liderando os grupos reflexivos.

Em sua apresentação no TEDX Blumenau, lembrou que os homens correspondem a mais de 100 mil Maracanãs lotados, ou seja, não há como não temer um exército de 4 bilhões de humanos do gênero masculino.

“O MEMOH tem importância imensurável para mim nesse processo que estou vivenciando nos últimos 10 anos. O facilitador das rodas de conversa é duplamente privilegiado, pois assim que acaba uma turma, que dura cerca de um semestre, a gente continua lá. É um mini MBA na prática”, comenta. “Você tem uma problemática universal sobre gênero pois a estrutura foi construída por homens e para homens.”

Na sua opinião, este é um modelo que pode ser replicado em empresas e há cases de sucesso também no poder público. No Maranhão, há grupos reflexivos de masculinidades que são conduzidos por psicólogos do serviço social público, com homens condenados pela lei Maria da Penha. O Instituto Patrícia Galvão lá do Maranhão fez uma comparação entre homens reinseridos na sociedade depois de cumprirem pena. Um grupo de homens participou de uma bateria de rodas de conversas e outro grupo seguiu sem essa orientação. Neste último grupo, 75%  reincidiram na prática da violência doméstica. No grupo que teve acompanhamento, foram só 5%. 

Para o sócio e produtor executivo do espetáculo InconscienteMente, esta é uma prova cabal do impacto que grupos reflexivos geram. “Feitos de maneira séria, sequencial, até perene, tem potencial de transformar as pessoas. Por isso, é uma boa forma para as empresas, mas ele precisa ser abraçado pela liderança. Tem custo para implementar, o conhecimento, o tempo, o custo emocional porque vai gerar homens contestadores que mexem com a empresa como um todo. A verdade é que tem de ser uma questão pessoal, uma prioridade de vida. Não tem KPI corporativo que faça acontecer para valer na velocidade que precisa. Óbvio que dá para ser mais lento e, por isso, menos impactante.”

Durante a pandemia, co-fundou, com Erik Kuroo e Leo Hwan, o coletivo Masculinidades Amarelas (MAAM) que, utilizando a metodologia do MEMOH, congrega homens de descendência de países do leste asiático – sobretudo Japão, China, Coréia e Taiwan, para tratar de pautas mais específicas que envolvem este outro recorte”

“Os homens amarelos não se sentem à vontade no grupo em que não tem uma identificação racial com os outros homens. Nós convivemos com um estereótipo do homem trabalhador, esforçado, passivo, gentil. É um estereótipo cheio de coisas positivas, e por serem positivas, os homens amarelos não fazem muita força para combatê-lo.” E acrescenta: “por exemplo, eu nunca fui parado pela polícia só porque tenho aparência japonesa. O japonês mesmo que esteja mal vestido, de chinelo,  não representa perigo para a sociedade. Se fosse um homem negro vestido da mesma forma certamente seria abordado.”

Como aliado de tantas causas, sabe que haverá perdas pelo caminho como dinheiro, tempo, amigos. Nada disso o faz desistir. “Se você começa a atuar como aliado, vai desagradar uma série de pessoas que ainda não se veem como privilegiadas e vão ver a sua atuação como uma agressão, não como um processo de transformação”. E conclui: “se você não está contribuindo para a mudança, está trabalhando para perpetuar a situação”.

Quer saber mais? Ouça o episódio 47 do podcasting “Somos Newa” com o tema “O papel dos homens no combate ao machismo”.

Ken Fujioka é sócio e co-fundador da ADA Strategy, boutique estratégica ágil fundada em 2018. Em 2022, está co-fundando a HOSEKI, uma venture studio para acelerar startups com foco em impacto ESG. É também host e co-fundador do podcast Naruhodo, sócio e produtor executivo d’Os Mentalistas (criadores do espetáculo InconscienteMente) e conselheiro na startup de pesquisa online por chatbots OnTheGo. Além disso, atua voluntariamente como caseiro e facilitador de grupos reflexivos sobre masculinidades no MEMOH e no coletivo Masculinidades Amarelas.