Como a ACNUR insere refugiados no mercado de trabalho

A ACNUR atua em várias frentes para apoiar a inclusão socioeconômica de pessoas refugiadas no país. A inserção no mercado de trabalho, seja por meio de contratação no mercado formal ou empreendedorismo, é a principal via de integração destas pessoas.

Vanessa Tarantini tem, hoje, uma filha de dois anos. Entre uma mamadeira e outra, noites mal dormidas, trabalha na área de meios de vida do ACNUR Brasil. Mesmo sendo um departamento considerado mais de back office que faz a ponte entre as empresas, ONGs e refugiados, sabe muito bem o drama de quem deixa tudo para trás e tenta recomeçar a vida em outro país. Conhecendo estes problemas bem de perto, acredita que seu trabalho possa contribuir para um mundo melhor tanto para a sua filha como para as gerações futuras.

A agência da ONU para refugiados atua junto com parceiros para apoiar a inclusão socioeconômica de pessoas refugiadas e outras pessoas com necessidades de proteção no país. O órgão busca garantir a inclusão dessas populações nos serviços e programas públicos e privados disponíveis, incluindo o emprego e geração de renda, e estimular o envolvimento do setor privado e dos atores do desenvolvimento com o processo de integração local.

“A inserção no mercado de trabalho, seja por meio de contratação no mercado formal ou que essa pessoa que queira empreender é a principal via de integração destas pessoas. Muitas vezes, elas chegam sem muitos recursos no Brasil, recebem uma assistência inicial da ACNUR e de outras organizações. Mas, para que ela realmente consiga andar com as próprias pernas, o papel das empresas é fundamental”, comenta a gestora.

Ela se interessou pelo assunto há 14 anos, ainda na faculdade, quando estudou o tema dos refugiados para a apresentação do seu TCC, sigla usada para Trabalho de Conclusão de Curso. Naquele momento, em 2007, os números eram extremamente menores.O universo de refugiados era de 3.000 pessoas reconhecidas. A maioria de origem de países da África. Atualmente, o contexto é muito diferente. Só de venezuelanos devem chegar em cerca de 300 mil as solicitações que estão abertas no Conare, o Comitê Nacional de Refugiados.

A ACNUR abre várias frentes para atender as necessidades desta população. 

Uma das ferramentas usadas é a Plataforma Empresas com Refugiados, uma iniciativa conjunta com a Rede Brasil do Pacto Global da ONU e promove boas práticas corporativas na inclusão de refugiados, além de materiais informativos sobre a contratação de refugiados, há uma lista de organizações que podem ser encontradas para contratação dessas pessoas. Já existem 29 práticas de sucesso listadas de 27 empresas, 6 delas recém-chegadas como Sodexo, Lojas Renner,  BRK Ambiental, Localiza e Unidas. Mais de 10 mil pessoas acessaram o site somente em 2020. 

A plataforma tem por objetivo estruturar modalidades de apoio às iniciativas privadas de capacitação profissional de refugiados, levando em consideração as necessidades de empregabilidade dessa população, os interesses do setor privado em contribuir para a integração e o acúmulo de experiências adquiridas através de projetos específicos em quatro diferentes áreas:

– Promoção da empregabilidade;

– Apoio ao empreendedorismo;

– Incentivo a meios de conhecimento e educação;

– Realização de iniciativas de sensibilização e engajamento

“No meu setor, busco esta integração. Mesmo que ainda não tenha a velocidade necessária, aos poucos, as portas vão se abrindo. Aqui, você pode descobrir uma oportunidade de como as empresas da iniciativa privada estão abrigando pessoas refugiadas e redescobrindo crescimento, inovação e diversidade no ambiente de trabalho”, comenta Vanessa. “Lançamos a plataforma porque percebemos que algumas empresas estavam realmente dando atenção para esse tema. Estavam contratando, apoiando a capacitação, o empreendedorismo com resultados positivos e queriam compartilhar esta experiência. E na lógica, uma inspira a outra. Começam a notar que não há obstáculos burocráticos, por exemplo, funciona igual à contratação de qualquer brasileiro no regime CLT.  A diferença pode estar na documentação, não ter um RG, um diploma, mas aí cabe à empresa flexibilizar algumas regras.”

Nos mais diversos setores, a crescente interlocução de empresas com refugiados demonstra, cada vez mais, que essas pessoas trazem consigo muito mais do que suas qualificações: seus sonhos e esperança de reconstruírem suas vidas revelam o melhor de suas ambições, criatividade e determinação.

Na opinião de Vanessa, “há empresas que gastam muito dinheiro com consultores, palestras motivacionais e programas de integração. Se você tem um refugiado na equipe e conhece sua história tudo isto vem naturalmente. Há um termo que gosto muito que se chama incremento do salário emocional que significa o orgulho dos funcionários quando veem suas empresas tendo este tipo de preocupação e trazendo esta diversidade para dentro de casa. Eu tenho isso aqui na ACNUR. Trabalho para essa organização porque eu acredito que ela faz um trabalho extremamente relevante. Gostaria que realmente todos pudessem ter essa sensação em suas empresas.” 

Outro projeto de sucesso que está na sexta edição é o Empoderando Refugiadas que tem como objetivo preparar mulheres refugiadas para trabalhar no Brasil, assim como desenvolver atividades empreendedoras no país. Também sensibiliza empresas sobre as particularidades da vida de pessoas refugiadas para que contribuam com a capacitação desses profissionais e possam contratar as participantes.

A gestora lembra que este foi o início de um relacionamento muito sólido de sistema com empresas. “Quando fiz meu TCC, era muito quem eram os atores para integração de refugiados: as Nações Unidas, organizações da sociedade civil, muitas representadas pelas igrejas. Naquele momento, a mobilização das empresas e do governo era inexistente. O cenário mudou com a guerra da Síria. As empresas começaram a dar atenção para essa questão de crises humanitárias. As pessoas que estavam se mudando e começaram a entender que também era um papel delas promover essa integração, seja através de contratação ou apoiando de outras formas, não apenas financeiramente. A ACNUR inclusive tem uma área só de arrecadação de doações.”

No relatório Guia para a contratação de refugiados e solicitantes de refúgio feito em parceria com a Tent e Missão de Paz, apresenta algumas dicas para os líderes das empresas que aderem a causa dos refugiados:

  • Prepare seu time
  • Planeje implantar um sistema de tutoria
  • Aproxime seus funcionários, não fomente a competição entre eles.
  • Ofereça treinamentos sobre diversidade cultural, fluxos migratórios, comunicação com pessoas que têm domínio limitado da língua, etc.
  • Considere fazer exercícios e dinâmicas de grupo com toda a equipe – brasileiros e não brasileiros – para fortalecer os laços entre elas;
  • Seja exemplo e, através de uma postura agregadora, reforce a importância da diversidade no local de trabalho;
  • Incorpore exercícios de compartilhamento de culturas em eventos da sua empresa ou negócio.

“O tema geral diversidade e inclusão nas empresas é relativamente novo. Primeiro, parecia caridade, agora já entendem que é uma boa oportunidade para os dois lados. Temos pesquisas que mostram que essas pessoas costumam ficar mais tempo nos seus cargos.”, ressalta Vanessa. “Analisamos que se uma empresa oferecer capacitação, investir nos refugiados, lá na frente a conta se pagava e até sobrava. Então é mais vantajoso realmente se a empresa considerar este treinamento do que ficar buscando pessoas “prontas” no mercado. “

E por falar em preconceito, tente desconstruir estereótipos culturais e raciais. Em pesquisa realizada com representantes de RH na cidade de São Paulo, 74,5% dos respondentes associaram africanos à atividades que demandam força física, versus 10,5% que os associaram à capacidade de liderança; por outro lado, 9,8% dos respondentes associaram

europeus à atividades que demandam força física, versus 49,3% que os associaram à capacidade de liderança (CARVALHO 2018). Estas correlações são provenientes de mitos galgados no racismo estrutural e nas desigualdades sociais, que devem ser questionados e desconstruídos.

“Temos essa sensação de que a sociedade é acolhedora diferente de muitos países. Mas não é uma verdade absoluta. Os venezuelanos entrevistados na última pesquisa que fizemos, cerca de 30% declarou que se sente discriminado e entende que nacionalidade é a principal razão dessa discriminação. É um número alto, claro! Mas quando a gente pensa no contexto, por exemplo, de Boa Vista que o cidadão brasileiro que estava acostumado com uma rotina e se depara com um fluxo grande de pessoas e vê as filas aumentando nos hospitais, por exemplo, dá para entender. Então, o governo tem que atuar para amenizar este impacto”, completa a mestre em Direitos Humanos.

Quando se trata de refugiados e migrantes venezuelanos, a análise dos dados aponta que tem apenas 1/3 das chances dos brasileiros de serem contratados em uma oportunidade

de emprego. Mesmo assim, em 2020, o acesso ao mercado de trabalho formal aumentou ligeiramente, ainda que no contexto da pandemia do COVID-19. No fim do ano, 30 mil

já se encontravam com carteira assinada e 3,8 mil eram microempreendedores.

Na frente de atuação do empreendedorismo, a ACNUR atendeu 656 pessoas refugiadas e migrantes que receberam apoio com treinamento e outras formas de assistência, inclusive financeira para abertura de seus próprios negócios. Tendo também uma plataforma exclusiva que apoia iniciativas e tem como objetivo se consolidar como referência para o setor privado para promoção de como fazer negócios com essa população. A plataforma de empreendedorismo tem, atualmente, 81 negócios em todo o Brasil. 

“É uma vitrine para as pessoas e há ações simples de serem feitas. Se uma empresa faz um evento e no coffee break oferece uma comidinha árabe e deixa o empreendedor falar por cinco minutos. Já é uma forma de apoio e principalmente de divulgação”, explica.

Uma das dificuldades dos empreendedores é o acesso ao crédito. Foi feito então um projeto piloto “Creditodos” com a Crédito Pérola foi lançado no dia 22 de dezembro, em Brasília, com o objetivo de facilitar o acesso dos refugiados ao microcrédito. O projeto piloto será estendido para Manaus e Boa Vista em 2021.

O Brasil tem uma legislação avançada em comparação a muitos outros países pois estas pessoas têm basicamente todos os direitos garantidos para trabalhar, abrir conta bancária, empreender. Tem países que estabelecem um prazo, outros só quando a documentação é completa. Aqui no Brasil, o processo normal leva muito tempo. Os venezuelanos têm sido reconhecidos em massa e agora a ACNUR está fazendo um apelo aos países para que facilitem e agilizem processos de reunificação de famílias afegãs.

Com a retomada do talibã ao poder, muitos afegãos estão procurando os escritórios do Acnur, desesperados e preocupados com a segurança e o bem-estar dos familiares que ficaram no Afeganistão ou estão em países vizinhos. 

Para garantir a preservação da união familiar e ajudar a proteger as vidas numa situação “excepcionalmente desafiadora”, o Acnur está pedindo aos países para priorizarem e simplificarem os processos de pedidos de reunificação familiar para os afegãos, assim como foi feito para os venezuelanos aqui no Brasil.

Quer saber mais? Ouça o episódio 30 do podcast Somos Newa que trata do trabalho na vida dos refugiados com Vanessa Tarantini.

Vanessa Tarantini é formada em Relações Internacionais (UNESP), tem mestrados em Direitos Humanos (USP) e Gestão de Organizações sem fins lucrativos (UAM/Madri).  Desde 2018, Vanessa trabalha na área de Meios de Vida do ACNUR Brasil. Vanessa atuou como gerente de ações coletivas de combate à corrupção e assessora de Direitos Humanos e Anticorrupção (Pacto Global da ONU).